sábado, 8 de fevereiro de 2025

A LINGUA DE CUPIDO: DAS FLORES AO KKKK

 A língua de Cupido: das flores ao KKK


Filho de Vênus (ou Afrodite, na Grécia), deusa do amor e da beleza e Marte (ou Ares), deus da guerra, Cupido (ou Eros) era benéfico e presidia festas e divertimentos, agradava homens e deuses ao feri-los de amor e paixão. Geralmente representado como menino com asas, podia ser malicioso e aprontar confusões amorosas a mando de sua mãe, Vênus, invejosa da beleza de outras mulheres, deusas ou mortais.

Certa vez, muito requisitado e muito atarefado em flechar corações, o jovem deus Cupido contratou um assistente no cargo de secretário, com direito a gordo salário, auxílio-transporte, auxílio-moradia e outras benesses. Não, não era em Brasília o local de trabalho, onde há mais ódio que amor, era pelo Brasil todo, sem descanso ou férias.

Nos primeiros tempos, o secretário de Cupido ensinava os modos de escrever cartas, longas missivas ardentes e cheias de suspiros; diversas linguagens foram ensinadas para as moças solteiras e rapazes nem tanto casadoiros: a linguagem do olhar, os modos de segurar um leque ou manobrar a bengala, como e onde pregar um selo no envelope, a língua secreta das flores e folhas. 

Na altura do começo do século XVII, Lady Montagu, esposa de um embaixador inglês, mencionava um código inventado na Turquia pelo qual os amantes podiam enviar mensagens completas se valendo apenas de flores e frutos, suas folhas e raízes. De fato, a linguagem das flores conheceu enorme sucesso editorial a partir do livro de Madame Charlotte de la Tour, em 1819,  “Le langage de Fleurs”. 

Traduzido para o português, foi seguidamente impresso, ampliado e aumentado, como o exemplar da família do memorialista Jean de Frans aqui em Batatais, impresso em 1873 pela Laemmert com o título enorme de “Dicionário e Linguagem das Flores, das Cores e das Pedras Preciosas” e subtítulo: “com a lista alfabética das suas significações, a loteria, o jogo das finezas, o oráculo das flores, o telégrafo do amor e várias poesias sobre o mesmo assunto”.

Fazer a corte, encontrar o par ideal para casar e ter filhos nunca foi tarefa fácil, o ritual impunha fases bem marcadas: olhares furtivos, rápidas trocas de palavras sussurradas à janela, aproximar-se durante a reza ou a missa, um beijinho ou até um beliscão nos braços,  um bilhete entregue pelo moleque de recados, o namoro quase sempre curto, o noivado para envolver as duas famílias e finalmente o “sim” perante o padre e o juiz, uma verdadeira odisseia.

Vigiadas pelos pais e irmãos mais velhos, as moças do século XIX e começos do XX tinham que se valer de estratagemas e ardis para namorar, sabiam de cor as fórmulas do amor com flores e frutos,  porém, o mesmo não se podia pedir aos homens, mais ligeiros em colecionar pretendentes, sem entender direito os códigos florais e as artimanhas com o leque.

No teatro, na igreja ou no passei público, o leque era certeiro como telégrafo do amor: Colocar o leque junto ao coração: Conquistaste meu amor; Tocar com a mão no leque ao abaná-lo: O meu desejo era estar sempre junto de ti; Acariciar o leque fechado: Não sejas tão imprudente; Tocar com o leque meio aberto nos lábios: Podes me beijar;  Tocar o leque na face direita: Sim;  Tocar o leque na face esquerda: Não;

Fechar e abrir o leque várias vezes: És cruel;  Abanar o leque muito depressa: Estou comprometida; Segurar o leque na mão direita e em frente à face: Segue-me; Colocar o leque junto da orelha esquerda: Quero ver-me livre de ti; Passar o leque pela testa: Tu mudaste.

Sem oportunidade de aplicar os sinais com o leque, fosse por falta de missa ou teatro, fosse por falta de leque, o meio mais cômodo (e saboroso...) de comunicação com o namorado era uma boa provisão de flores e frutos. O rapaz era traidor? um abacate nada mais; ao antipático,  uma banana-da-terra; uma mensagem completa podia conter: bastante salsa (não desanime), um pouco de  trevo (vem segunda-feira), uma declaração melosa: tinhorão (a ninguém mais amo), contando com chuchu (há novidades em casa) e um punhado de jabuticabas (venha me ver) e o recado apaixonado seguia disfarçado na cesta da mucama alcoviteira.

Galanteio escrito no “correio elegante” das quermesses ou do “flirt” no “footing” da praça da Matriz estaria completo com uma braçada de hortênsias (tenho muito medo de perder teu amor), cravos (beijos, pois te amo loucamente), glicínias (és tu meu sonho mais querido) e assinatura com margaridas (entrego-te toda minha vida) e lírios (és a única que eu amo), como receitava a revista “Careta” em 1948.

Namoros incertos, beijos roubados, sonhos desfeitos, nem sempre a “cantada” dava o resultado esperado, pega de surpresa, uma moça se fazia de surda, outra podia responder de bate-pronto: Cantada: Nossa, não sabia que boneca andava! 

Resposta: E eu não sabia que macaco falava! E mais esta: - Cantada: Se tivesse uma mãe como você mamaria até os 30 anos. Resposta: Se eu tivesse um  filho  como você mandava pro circo!

Dos casamentos “arranjados” à livre escolha dos pares, até a escolha de viver sozinhos e amar livremente, aí incluído o sexo, muita água passou sob a ponte, a industrialização, o crescimento das cidades, o cinema, a pílula e as comunicações cada vez mais fáceis e baratas fizeram o resto. Ao receber uma réstia de alho e figos secos, não se preocupe, será apenas um recado desesperado: queimo no fogo de amor, pois és o meu bem....