segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

É com esse que eu vou: entrudo e carnaval em Batatais
Sérgio Corrêa Amaro
                         Rei Momo e sua corte às portas da cidade trazem um decreto com força de lei e apenas três artigos: 1º. Fica estabelecido o Reinado da Alegria e todos os súditos serão chamados de foliões; 2º. Todas as fantasias são permitidas menos as de pirata, índio, havaiana, palhaço, baiana, odalisca e bebê chorão; 3º. As despesas com confete, serpentina, máscaras e cerveja correrão por conta de cada um, revogando-se as disposições em contrário até quarta-feira de cinzas.  Assinado: Zé Pereira, Ministro Plenipotenciário das Diversões e sua Majestade, o Rei Momo I e Único. Dado e passado nesta vila e real cidade de Batatais em fevereiro de 2013.
                         Nosso maior memorialista, Jean de Frans (José Augusto Fernandes), além do celebrado “Bom Jesus da Cana Verde - Batatais de Outrora” (1939) publicou uma série de artigos para o Correio Paulistano,  com lembranças, fatos e pessoas do entrudo e do carnaval de Batatais.
                         O entrudo foi introduzido no Brasil pelos portugueses colonizadores, diz-se, até, que teria vindo ao tempo das caravelas. O fato é que o entrudo foi dominante durante todo o período colonial, caindo em desuso, por um ou outro motivo, até ser destronando completamente pelo Carnaval, primeiro com bailes de máscaras, o corso de carruagens (depois com automóveis, símbolos de status social) os ranchos, préstitos e blocos, ascensão do samba e da gente de cor, como se dizia, nas grandes manifestações populares e da classe média, as primeiras escolas de samba, ritmos próprios como as inesquecíveis marchinhas, os bailes de salão e os desdobramentos regionais (trios elétricos, samba paulista, frevo no Nordeste) até o carnaval como o conhecemos hoje.
                         Em Portugal não houve tal separação, o entrudo permaneceu mais ou menos o mesmo, especialmente no Norte, com foco na região do Minho e em pequenas vilas e aldeias, enquanto o carnaval, a bem dizer, nunca foi unanimidade nacional, ocorrendo apenas em poucas e maiores cidades, copiando moldes italianos e franceses, igualmente localizados e bem delimitados.
                         Na revista carioca de Paula Britto (1809-1861) chamada “A marmota na Corte” número 45 de fevereiro de 1850 já se clamava pelo fim do “desagradável” entrudo e pela definitiva permanência dos bailes de máscaras, muito mais “europeus” e “civilizados” como o Rio, sede da Monarquia, pretendia ser nos trópicos.
                         Jean de Frans aponta em saborosa crônica publicada em setembro de 1942 o que fôra o entrudo na pequena cidade de Batatais do seu tempo de menino e rapaz, décadas finais do século XIX. A documentação primária, naturalmente, é escassa e ao fio da memória de Jean de Frans vamos colecionando apontamentos da imprensa da época, digitalizada pelo belíssimo projeto da Biblioteca Nacional para conservar os periódicos extintos e leituras de autores que se dedicaram ao tema, como Maria Isaura Pereira de Queiróz (1992) e Roberto DaMatta (1997).
                         A memória do saudoso jornalista batataense, morto em 1947, assinala o entrudo com os “encamisados”, homens a cavalo, vestidos com túnica e encapuzados que saíam nos domingos anteriores ao carnaval em silêncio e com archotes, seguidos por um “zé-pereira”, tradicional do entrudo português, barulhento, promovendo a maior algazarra e a indefectível cançoneta que até hoje é tocada nos salões (aqui em Batatais é ela que abre e fecha cada seleção de marchinhas) verdadeiro “hino” do carnaval, composto por Francisco Correia Vasques em 1869, em comédia-paródia do “Les Pompiers de Nanterre”, intitulada “Zé-Pereira Carnavalesco”, estrondoso sucesso no Rio de Janeiro e no restante do Brasil:
Viva o Zé-Pereira
Que a ninguém faz mal
Viva a rapaziada
No dia do Carnaval!
                         O Rio de Janeiro ditava a moda carnavalesca e os centros urbanos iam atrás, Batatais sempre acompanhando de perto: assim foi com os engraçados e odiados banhos de água, de farinha, de pós coloridos, as batalhas de limões-de-cheiro (bolinhas de cera com líquido perfumado), as trocas de flores, os carros alegóricos, as “críticas”, em geral alegorias ou fantasias para falar mal de políticos e manda-chuvas locais, máscaras de animais, dominós, príncipes e donzelas, palhaços e tudo o que se pudesse arranjar como disfarce e brincadeira.
                         Figuras do entrudo e do carnaval em Batatais: Joaquim Augusto da Cunha e Silva, subdelegado, capitalista e rico fazendeiro dono de escravos; os irmãos Celso e Antônio Garcia, coronel Manoel Teodolindo do Carmo e, quem diria, Dr. Joaquim Celidônio e Washington Luís, introdutores da moda da farinha de trigo e do carrapicho, o farmacêutico Oscar Porto, Joaquim Augusto e até o velho capitão José Umbelino Fernandes (avô de Jean de Frans).
                         As inversões de que tanto falam antropólogos e outros estudiosos do carnaval brasileiro - homem vestido de mulher, rico se passando por pobre e sujo, pessoas sérias pregando peças em todo mundo -  também tinham adeptos em Batatais, um caso célebre lá por 1897 foi o de um oficial de justiça, João Aprígio de Toledo, fantasiado de bailarina, com máscara cor-de-rosa, objeto dos amores inconfessáveis do Promotor...  que quando descobriu a bigodeira por trás da máscara foi um Deus-nos-acuda!
                         Para tudo terminar na Quarta-Feira...Na noite da terça-feira gorda era realizado com grande ruído pelas ruas  o “enterro dos ossos”, chorando o fim do carnaval, assimilado ao diabo e à chegada iminente de Dona Quaresma, retrato da morte e da abstinência forçada de carnes e bebidas, os troca-flores e mascarados passavam um verdadeiro esquife ou caixão, dentro do qual as famílias depositavam prendas diversas, galinhas, pastéis, doces e vinho, atrás de tudo, claro, vinha mais uma vez o zé-pereira...e a farra ia até altas horas,  madrugada adentro, muita gente comia e bebia no “velório” e muita gente ia ao baile. Os mais animados iam às duas festas!
Publicado em "A Notícia", 25.01.2013