terça-feira, 25 de setembro de 2012

O imperador e sua corte em Batatais – primeira parte
Sérgio Corrêa Amaro
                        Os trilhos da Mogiana (Companhia Mogiana de Estradas de Ferro) chegaram a Batatais acompanhando o desenvolvimento da economia cafeeira a partir de 1830 pelo chamado “Oeste Paulista” - extensa região que vai  de Campinas (oeste velho) a Ribeirão Preto (oeste novo) -  o “oeste” não é, naturalmente, geográfico, mas apenas referenciado às regiões de plantio mais antigo do Rio de Janeiro, Parati e Angra dos Reis e à região onde o café floresceu de fato, o Vale do Paraíba (leste de São Paulo e sul do Rio de Janeiro).
                        No mês de outubro de 1886 D. Pedro II, a imperatriz Dona Teresa Cristina e um reduzido e ilustre séquito de autoridades e nobres empreenderam viagem partindo do Rio de Janeiro com direção a São Paulo e Minas Gerais, visitando igrejas, instituições, engenhos, fábricas, cidades e inaugurando trechos e estações da estrada de ferro Mogiana.
                        Em Batatais suas majestades chegaram no dia 25 de outubro por volta do meio-dia, procedentes de Ribeirão Preto, recebidos pela Câmara Municipal incorporada, autoridades e população local e da vizinhança.
                        A ata da Câmara de 25 de outubro de 1886 assinala que houve muitas “girândolas” (fogos de artifício), demonstrações de cortesia e banda de música que tocou o hino nacional e canções italianas, estas, com certeza, para agradar à imperatriz, napolitana de nascimento, princesa das Duas Sicílias. Por feliz coincidência, Dona Teresa Cristina nasceu a 14 de março (1822), data da elevação de Batatais a vila (1839).
                        Da estação, o casal imperial desceu à cidade em carro puxado por duas parelhas de cavalos brancos,       lembrando que havia uma distância de “apenas” três quilômetros, praticamente sem nada à volta, de terra batida, antiga rua da Estação, atual avenida 9 de Julho e visitou a igreja Matriz, o cemitério, a Santa Casa, algumas contribuições em dinheiro para instituições, igreja e para alforria de escravos e foi recepcionado em uma das melhores residências batataenses, para descanso e o chá.
                        Pouco ou nada se fala, porém, a respeito de quem acompanhava Dom Pedro II em suas andanças de inaugurações ferroviárias pelo interior paulista naquela época. Do fato nos dão notícia a ata da câmara de Batatais e publicações em jornais e periódicos, pois as viagens do imperador eram largamente registradas por repórteres do Rio de Janeiro, São Paulo e Campinas.
                        Para este trabalho valemo-nos da Revista de Engenharia, especialmente a edição número 149, de novembro de 1886, publicada no Rio de Janeiro, conservada e digitalizada pela Biblioteca Nacional.
                        Os personagens desta “excursão imperial” a Batatais foram o barão de Sabóia, os viscondes de Paranaguá e Parnaíba, o conselheiro Antônio Prado e o general Miranda Reis.
                        O general Miranda Reis (José de Miranda da Silva Reis) foi político e militar carioca (1824-1903), governador das províncias do Mato Grosso e Amazonas, diretor da Escola Superior de Guerra, lutou com bravura na Guerra do Paraguai, tendo alcançado a patente de marechal, agraciado em várias ordens militares e religiosas, recebeu o título de barão com grandeza de Miranda Reis em 1881. À época da visita a Batatais possuía a patente de tenente-general.
                O conselheiro Antônio Prado foi um destes homens “polivalentes” que não se fazem mais: advogado, fazendeiro, político e empresário paulista (1840-1929), era Ministro dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, presidente por 30 anos da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, daí a explicação de sua presença em Batatais, não fosse ele mesmo grande produtor de café na região de Ribeirão Preto, Guatapará e Santa Cruz das Palmeiras. Estadista, participou da elaboração da lei Saraiva-Cotegipe (ou lei Sexagenária), incentivou a imigração italiana para o Brasil, foi pioneiro ao criar o balneário do Guarujá, banqueiro (antigo Comind, vidraria Santa Marina, frigoríficos), primeiro prefeito de São Paulo, construiu o Teatro Municipal de São Paulo, a Pinacoteca do Estado e a Estação da Luz, fundou o Partido Democrático, foi pioneiro, também, nas ações de reflorestamento.
Publicado em "A Notícia"

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A arte de bem morrer em Batatais – segunda parte
Sérgio Corrêa Amaro
                        Vimos no artigo anterior o sucesso editorial que foi o livro de Estevão de Castro “Breve aparelho e modo fácil de ajudar a bem morrer um cristão...” e hoje veremos como penetraram fundo na alma portuguesa e brasileira colonial as proposições de como preparar para a morte, os cuidados para evitar os ataques do demônio nas horas finais da agonia, a disposição dos bens pelos testamentos e as recomendações quanto ao funeral, às esmolas pias,  o sepultamento e até o número de missas para sufrágio da alma que partia deste mundo, de preferência sem estágio no purgatório e rumo direto ao céu dos cristãos.
                        Os testamentos muitas vezes eram lançados inteiros no mesmo livro paroquial de registro de óbitos ou podia constar apenas a parte da “herança pia” (esmolas e bens espirituais). Em outros arquivos, os testamentos estão nos autos de inventário judicial, com a relação dos herdeiros, avaliação dos bens, partilha e entrega (pagamento) do que coube a cada herdeiro. De acordo com o costume da época e o ordenamento jurídico, os testamentos traziam todos os bens, dos mais ínfimos, como talheres, roupas, enxadas e mais “trastes” até bens de raiz (terras), as roças, animais e escravos.
                        Via de regra, um testamento continha uma introdução, identificação do testador, invocação de Deus, de Jesus, da Santíssima Trindade, anjos e santos de devoção; nomeação de um ou mais testamenteiros, relação de herdeiros, disposição e forma de distribuir os bens, reconhecimento de paternidade de algum filho natural ou bastardo, confissão de dívidas, recomendação para sepultamento quanto a lugar, mortalha e pompas fúnebres, número de missas e esmolas.
                        De modo geral, os testamentos do século XVIII eram bem mais complexos do que aqueles do início do  século XIX e à medida que este avança, permanecem as disposições dos bens materiais, diminuindo gradativamente as formulações de ordem espiritual.
                        Em Batatais, como já apontado em trabalhos anteriores, o padrão original era o português, pelas Ordenações Filipinas (vigentes no Brasil até 1916, ano do surgimento do Código Civil que vigorou até 2002), via colonizadores portugueses e brasileiros “paulistas” ou “mineiros”.
                        Tomemos alguns exemplos de testamentos de Batatais para fins de ilustração do que já foi dito acompanhando, parcialmente, transcrição de TAMBELLINI (2000)
                        O afamado alferes Antônio José Dias faleceu de icterícia aos dois de novembro de 1823, encomendou sua alma com os sacramentos necessários, o “opositor” padre Bento José Pereira, é dos poucos casos de transcrição quase completa do testamento no livro de registro de óbitos número 1, conservado na Igreja Matriz do Bom Jesus da Cana Verde.
                        De início, constatamos um “ligeiro” equívoco, que aumentava a idade do alferes em mais de 4 anos, pois o testamento da igreja diz que faleceu aos 78 anos, mas nunca poderia ter essa idade, pois nascera em 24 de fevereiro de 1749 em São Pedro de Morgade.  Assim, o alferes ficou “mais velho” ao morrer, pois tinha, na verdade, 74 anos...O sobrenome Chaves que aparece algumas vezes foi acrescentado muito tempo depois, com certeza para diferenciar de algum homônimo inconveniente ou simplesmente para referir-se ao local de nascimento, pois São Pedro de Morgade pertenceu à comarca de Chaves, do arcebispado de Braga.
                         Para obter o batismo do alferes, tivemos o apoio inestimável do genealogista Elpídio Novaes Filho, de Ribeirão Preto.
                        Filho de Domingos Dias e Maria Álvares (ou Alves), não se sabe como nem quando aportou no Brasil, casou-se em Lavras do Funil (atual Lavras-MG), com Ana Antônia do Espírito Santo, que faleceu antes dele (1811) da qual fez inventário em Mogi Mirim, atualmente conservado no Arquivo Histórico Municipal, em Franca.
                        Do relatório das verbas testamentárias anotadas pelo padre Bento José Pereira, extraímos que o falecido desejava ser sepultado com o hábito de São Francisco, ordem de muito prestígio em Minas Gerais, reservada a uma elite rica e exclusivamente de homens brancos de comportamento religioso exemplar.
                        No testamento nomeia herdeiros os sete filhos havidos do casamento legítimo e mais uma filha Maria, reconhecida e alforriada por quarenta mil réis, com a falecida escrava Inácia, quando era viúvo, o que ele mesmo declara ter sido “por miséria humana”, observe-se a confissão e o acerto de contas pessoais para chegar bem ao Paraíso.
                        Declara ser membro das prestigiadas ordens do Santíssimo Sacramento, das Almas, da Casa Santa de Jerusalém e da Ordem 3ª. de São Francisco, todas em São João Del Rey.
                        Nomeia três filhos como testamenteiros (os que executam o testamento, cumprindo-lhe as vontades e disposições) e promete a quem aceitasse aquele encargo o prêmio de cinquenta mil réis, livre de despesas.
                        Declarou ser de sua vontade o sepultamento na matriz, com missa de corpo presente com o pároco e com todos os sacerdotes que se achassem, pagos com a esmola do costume, pois a preocupação, bastante comum na época,  era obter a intermediação do maior número possível de padres.
                        Das missas “encomendadas” ao testamenteiro pediu 90 (noventa), distribuídas assim: 50 para sua própria alma, 10 para seu falecido pai, 10 para sua falecida esposa, 10 para seus falecidos escravos e 10 para todos que com ele tiveram negócios.
                        A “terça” era a parte que ele, falecido, podia dispor livremente, assim o fez pela alforria e libertação de uma escrava chamada Joana, no valor total e para os escravos Maria Negra, Domingos e Joaquim, pela metade do que valiam.
                        Reconhece algumas dívidas e manda que sejam pagas, nomeando os credores e onde podiam ser encontrados.
                        Ao Bom Jesus da Cana Verde declarou dever 22 mil réis em esmolas e à Senhora do Rosário outros 90 mil réis.
                        Ironicamente, ou por uma última tentativa de reverter o quadro da mudança da sede da matriz para o Campo Lindo das Araras, prometeu 100 mil réis se a capela interina do Bom Jesus permanecesse onde estava (nos Batatais, do amigo Manuel Bernardes do Nascimento), mas se fosse realmente transferida “para outra parte” nada se lhe daria...
                          Em moeda atual, os 100 mil réis prometidos equivaleriam a uns R$ 6.000,00, uma pequena fortuna para a época da pós-independência em que a moeda era considerada forte, suficiente para comprar um escravo do sexo masculino, adulto e produtivo, mais caro, proporcionalmente, que a própria terra.

Publicado em “A Notícia”, 17.08.2012

domingo, 12 de agosto de 2012

A arte de bem morrer em Batatais – primeira parte
Sérgio Corrêa Amaro
                        Desde tempos imemoriais o homem teve com a morte e o morrer uma relação ambígua, para dizer o mínimo, entre o medo do desconhecido, a tentativa de obter certas garantias no além ou as formas de facilitar a vida “do lado de lá” ao lado de ansiedade e esperança em alcançar o paraíso, fosse qual fosse, os Campos Elísios dos gregos e romanos, o reino dos mortos dos antigos egípcios ou o céu, para os cristãos de todas as vertentes, de preferência sem passagem pelo purgatório.
                        Entre os cristãos, católicos especialmente, podemos diferenciar, ao menos, três fases ou momentos distintos quanto ao ato de morrer ao longo dos tempos históricos: na Antiguidade, primeiros séculos do cristianismo, uma atitude de medo ante o desconhecido, mas pacífica e de resignação, à espera de um Juízo Final e da ressureição, presente até finais da Idade Média, uma morte, por assim dizer, “domesticada”.
                          Durante a Idade Média, a depender da época e do lugar geográfico, a morte vai aos poucos deixando o âmbito familiar e passa, cada vez mais, a ser “clericalizada”, isto é, com intermediação da Igreja Católica por meio de seus representantes na Terra, os sacerdotes (P. Ariès, 1989).
                        Será no século XVIII e no decorrer do século XIX que haverá uma nova representação da morte, por vezes romantizada, uma ruptura radical da morte familiar, em casa, rodeado de parentes e amigos, para uma morte insuportável, cada vez mais longe, recebendo influência cada vez maior da medicina higienista e do poder estabelecido. Aos poucos os enterramentos dentro ou perto das igrejas vão diminuindo, seja em razão de normas de ordem prática, para evitar contaminações e doenças, seja por motivos de ordem pública, os cemitérios vão passando para a administração municipal.
                         Ocorre, assim, como que uma separação mais claramente definida entre mortos e vivos, o local da morte é, cada vez mais, interdito à presença da família, deixa-se o “teatro” da casa em favor dos hospitais, a morte é um tabu, pouco ou nada se fala dela, ao doente de morte resta apenas a solidão; as práticas funerárias passam para profissionais pagos; o velório não ocorre em casa, mas em locais previamente determinados pela autoridade, não há grandes demonstrações de dor e de choro, como no passado, o luto é encurtado ao mínimo socialmente aceitável.
                        A arte de bem viver (ars vivendi) teve como paralelo a arte de bem morrer (ars moriendi), uma série de habilidades necessárias para o cristão morrer em paz consigo e com aqueles que o cercavam, atos preparatórios fundamentais como a confissão, extrema-unção e comunhão, o acerto de contas com possíveis desafetos e credores, modos de dispor dos bens que deixava, reconhecimento de filhos bastardos, prescrições a respeito do sepultamento, missas e orações.
                        Uma das questões principais dizia respeito ao testamento, a declaração solene de última vontade, documento a ser feito com urgência ao sinal de doença mortal ou, havendo tempo, com a antecedência necessária ao bom e fiel cumprimento “cristão” das disposições do falecido.
                        As regras de bem morrer foram sendo desenvolvidas na Europa a partir do século XV na passagem para o século XVI, inicialmente em pequenos opúsculos ou livretos, com textos e imagens.
                        O Concílio de Trento (1545-1563), instituidor da Reforma Católica (que, diga-se de passagem, já vinha se processando) também  trouxe inovações quanto aos ofícios fúnebres e a Companhia de Jesus (1540) irá produzir numerosas obras que terão, algumas, dezenas de edições, muito populares em Portugal e, por conseguinte, no Brasil colonial.
                        O mais conhecido foi um livro de 1621 (primeira edição) escrito por Estevão de Castro, padre jesuíta português (1575-1639) que teve edições conhecidas até pelo menos 1724, um sucesso editorial para a época, a revelar a preocupação quase doentia do homem com seu fim, a escatologia. O famoso livro foi publicado com o interessante (e longo) título de “Breve aparelho e modo fácil para ajudar a bem morrer um cristão com a recopilação da matéria de testamentos e penitência, várias orações devotas, tiradas da Escritura Sagrada e do Ritual Romano de N. S. P. Paulo V”.
                        O livro trazia um passo-a-passo para “morrer bem”, os socorros espirituais necessários, prática de redigir e orientar os testamentos, tudo em seis lições que acompanhavam os diversos “graus de doença” do moribundo.
                        Tanto em Portugal como no Brasil os modelos propostos seriam copiados, com ligeiras alterações, por mais de cem anos, o que tem diversas explicações, além da qualidade intrínseca do material produzido por Estevão de Castro: trazia pormenores que não eram claros no texto da lei vigente (Ordenações Filipinas) quanto à feitura dos testamentos e codicilos, a procedência do autor - pois era jesuíta, membro de uma ordem de muito prestígio e dedicada à preservação da fé católica - e o próprio didatismo da exposição, ensinando como em um tutorial contemporâneo, era quase tão fácil como preencher um formulário, num país de dimensões continentais como o nosso,  em que a Igreja tinha o maior número de letrados e estreitas relações com o poder político, pelo regime do padroado.
Publicado em "A Notícia" de 10.08.2012

domingo, 29 de julho de 2012

Batatais e Caconde: destinos cruzados
Sérgio Corrêa Amaro
                        Até a História tem suas histórias, impossível não pensar assim quando nos deparamos com determinados acontecimentos, entrelaçando pessoas, fatos e situações aparentemente sem relação alguma.
                        É o caso de Batatais e Caconde, a mais antiga cidade do Oeste paulista, uma das quinze estâncias climáticas do Estado de São Paulo, atualmente com cerca de 19 mil habitantes.
                        As origens da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Bom Sucesso do Rio Pardo se prendem à descoberta de ouro por Pedro Franco Quaresma, pelos idos de 1755 no local chamado Bom Sucesso, a 14 quilômetros do centro de Caconde, área que faz parte da atual Mococa (Borda do Mato).
                        A notícia de ouro na região se espalhou mais rapidamente durante o governo do Morgado de Mateus, Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, à frente da recém restaurada Capitania de São Paulo (1765-1775); a região vai recebendo povoação, homens em busca do precioso minério (que acabou não correspondendo ás expectativas) e, sesmeiros, posseiros e  fazendeiros de plantar e criar.
                        O chamado “Descoberto” do Bom Sucesso terá sua freguesia em março de 1775, fundada pelo pároco Francisco Bueno de Azevedo sob as ordens do Bispo de São Paulo, Dom Manuel da Ressurreição. Este mesmo padre Francisco Bueno de Azevedo fará muitas e muitas vezes o “Caminho de Goiás” para proceder à “desobriga”, dando os sacramentos do batismo e do matrimônio em Batatais de 1781 a 1789 (CAMPANHOLE, citado por TAMBELLINI, 2000).  A freguesia foi desmembrada da vigararia de Mogi Mirim e da paróquia de Mogi Guaçu.
                        Se o ouro de Caconde não foi o que se esperava, houve esvaziamento populacional naquela região, os poucos que ficaram se dedicavam à agricultura de subsistência e pequeno comércio; a freguesia foi mantida e  igualmente a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição que, porém,  ia aos poucos conhecendo o abandono até quase arruinar-se completamente. Espiritualmente, Caconde se dirigia à vizinha Cabo Verde,  em Minas Gerais.
                        No entanto, se o resultado da mineração aurífera foi acanhado, novo ciclo agro-pastoril começa a desenhar-se em Caconde por volta de 1810 e 1811, oportunidade em que são passadas muitas cartas de sesmarias, terras são apossadas e outras havidas por compra.
                        Fazia-se necessária a restauração da freguesia, os fiéis católicos de Caconde (bairro Bom Sucesso, na época) eram obrigados a ir a Cabo Verde, distante nove a dez léguas.
                        Será por iniciativa do Alferes Manuel Alves Moreira Barbosa e do capitão Alexandre Luís de Melo o movimento para restaurar a freguesia e erguer nova capela, a partir de agosto de 1818, junto ao visitador Padre Antônio Marques Henrique na passagem pastoral por Cabo Verde; em fevereiro de 1820 pedem o patrocínio do capitão-mor de Mogi Mirim, José dos Santos Cruz, para que interceda a favor daquelas “300 almas”. Em 28 junho de 1820, o Bispo Dom Mateus de Abreu Pereira assina a provisão ordenando a restauração da freguesia e a construção de uma nova capela.
                        Coube ao casal Miguel da Silva Teixeira e Maria Antônia dos Santos, a pedido do alferes Manuel Moreira Barbosa e outros, a honra de doar 103 alqueires de terras destacados de sua Fazenda Bom Jesus para o patrimônio da freguesia de Nossa Senhora da Conceição, então restaurada. Só para constar, Maria Antônia era natural de Lavras (a mesma do Bom Jesus da Cana Verde, como já vimos).
                        É hora de dar cores mais vivas ao nosso quadro fático-histórico. Quem foi o incentivador da restauração da freguesia de Caconde, o alferes-comandante Manuel Alves Moreira Barbosa? Nada menos que um dos irmãos de Germano Moreira!
                        Manuel Alves Moreira Barbosa teria nascido por 1780 em Aiuruoca (ou em Barbacena, como o irmão Germano ou em Serranos, não se sabe ainda ao certo), filho de Hipólito Moreira dos Santos  e Maria Vicência Alves de Jesus, casou-se em 1815 com Constância Pereira da Mota, com geração;  realizou por sua conta um interessante recenseamento populacional em 1822; foi a primeira autoridade civil, como vice-prefeito de Caconde junto à Câmara de Mogi Mirim (1836).
                        O irmão mais novo (Manuel) teria influenciado de alguma forma o irmão mais velho (Germano Moreira) para que também doasse terras na constituição do patrimônio da freguesia do Bom Jesus da Cana Verde de Batatais em agosto de 1822? Germano Moreira e sua mulher Ana Luísa foram movidos pela fé pura e simples, pretendiam apenas respaldar de legalidade suas terras, decorrente de questionamento judicial de terceiros em 1817 ou seguiram o exemplo do irmão e cunhado Manuel Alves Moreira Barbosa na semeadura de freguesias no sertão do Rio Pardo? 
Publicado em "A Notícia", 27.07.2012

domingo, 15 de julho de 2012

BOM JESUS DE BATATAIS: O VIAJANTE DA ARMÊNIA
Sérgio Corrêa Amaro *
                        A data de 6 de agosto, festa do padroeiro de Batatais e de muitas outras cidades no Brasil e no mundo, sob as várias invocações do Bom Jesus, tem origens bem remotas que vão muito além da própria religiosidade cristã e católica.
                        Na cristianização da Armênia, São Gregório, o Iluminador, em luta religiosa e política com o príncipe Tridates III consegue, no ano de 301 d.C. que a Armênia seja o primeiro país a adotar oficialmente o cristianismo, bem antes das permissões do imperador Constantino.
                        A prática de adaptar os costumes pagãos dos armênios fez com que o culto da deusa da fertilidade e da castidade Anahit, a dos festivais coloridos e musicais do Vardavar, fosse equiparado à Transfiguração do Senhor, comemorada desde sempre em 6 de agosto;  mantinha-se a data, trocava-se a devoção.
                        Da Armênia para os Balcãs e para Roma e toda a cristandade foi questão de tempo.
                        O auge do culto ao Senhor do Monte Tabor, o da Transfiguração, atinge o máximo quando o Papa Calisto III (Afonso Bórgia, 1378-1458) institui que o dia 6 de agosto seria para sempre consagrado à memória da vitória cristã sobre os turcos no Cerco de Belgrado (capital da atual Sérvia) em julho de 1456       . O papa, que muito lutou para organizar uma cruzada contra os turcos muçulmanos, tendo obtido pouco apoio dos reis europeus, considerou a vitória católica como fundamental para barrar a entrada muçulmana na Europa, mantendo-os afastados por pelo menos 70 anos.  Este mesmo papa Calisto III foi o que reconsiderou o caso da condenação de Joana D´Arc e criou o célebre regime do Padroado com os reinos de Portugal e Espanha, pelo qual os reis ficavam incumbidos da organização e administração da Igreja Católica em seus domínios.
                        Coincidência ou não, o Papa Calisto III faleceu em 1458,  no dia 6 de agosto, dia do Bom Jesus de sua fé particular.
                        Na sangrenta batalha de Belgrado, os camponeses cristãos se lançaram à guerra com armas simples, tipo foices  e enxadas, inflamados pela oratória de João de Capistrano, monge italiano (1386-1456) e sob a condução especializada do príncipe e estrategista  húngaro João Corvino (1387-1456). Do lado turco muçulmano, o sultão Murad II saiu ferido gravemente na coxa e recuou com o que sobrou das tropas.
                        Em Roma, o Cristo Salvador da basílica papal de São João de Latrão (atualmente a única do Vaticano fora dos muros) tem duas festas maiores, o 9 de novembro (dedicação) e o 6 de agosto (Transfiguração). Será o Jesus Cristo da Transfiguração o mesmo da Cana Verde, dos Passos, de Matosinhos, da Paciência, dos Aflitos, do Ecce Homo, dos Perdões, da Redenção, da Pedra Fria e muitos outros, isto é, o primeiro da Transfiguração anuncia o drama da paixão e as imagens vão sendo relacionadas à fé do lugar e das pessoas que o habitam.
                        Em trabalho anterior pudemos confirmar que o culto do Bom Jesus já se achava em Portugal pelo menos desde a Idade Média, quase exclusivo no Norte (Entre-Douro e Minho), expandindo do convento de Bouças para Matosinhos, daí para o restante de Portugal, Espanha e mais tarde para as colônias portuguesas dos dois lados do Atlântico e até em Goa, na Índia, catedral, aliás, considerada uma das 7 Maravilhas do Patrimônio Português no mundo.
                        De Minas Gerais, a devoção ao Bom Jesus atingirá um raio de centenas de quilômetros, até Goiás e Mato Grosso, passando, naturalmente, pelas dezenas de freguesias, paróquias, futuras vilas e cidades, como é o caso de Batatais, aqui em nossa terra vai aportar na versão Cana Verde, reproduzida, aliás, em outros lugares de Minas, como a atual Perdões, Araguari, Tabuleiro ou a própria Cana Verde. Em São Paulo encontramos a devoção em Iguape, Jardinópolis e Tremembé, no Paraná em Siqueira Campos, na Bahia na Lapa e Bom Jesus da Serra. Ao que consta são mais de 200 (duzentas) as invocações ao Bom Jesus pelo Brasil afora.
                        Quando falamos em globalização e mundialização pensamos o fenômeno como se fosse completamente contemporâneo ou moderno, a História nos mostra, porém, que o Bom Jesus “viajou” -  a longo prazo, naturalmente -   da Armênia para os Balcãs, dali para a Itália, Portugal, atravessou o oceano, aportou na Bahia, penetrou em Minas Gerais e chegou até nós.

Publicado em "A Notícia", 13.07.2012

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Bom Jesus: o Senhor de muitos nomes
Sérgio Corrêa Amaro *
                        Batatais foi elevada à condição de freguesia por alvará régio de 25 de fevereiro de 1815, sob a invocação do Bom Jesus da Cana Verde dos Batatais, em seguimento a uma petição de moradores do entorno da primitiva capela de finais de 1810; natural que o trâmite levasse mais de quatro anos, pois a Mesa da Consciência e Ordens, sediada no Rio de Janeiro, só daria anuência depois de ouvidas as partes interessadas, os párocos de Franca e de Mogi Guaçu, esta porque perderia território para outra freguesia a ser criada, a de Casa Branca.
                        Por um motivo ou por outro, os párocos de Franca e Mogi Guaçu foram contra a criação das duas freguesias, no entanto, a firme disposição do Bispo de São Paulo, D. Mateus de Abreu Pereira, que acumulava na época o governo político da capitania ao de membro do alto clero, foi decisiva e as duas freguesias foram, enfim, criadas, cada uma com área própria de jurisdição.
                        O alvará do Príncipe-Regente, futuro D. João VI, confirma o orago da nova freguesia como Bom Jesus da Cana Verde dos Batatais. Ora, não seria mais simples e direto designar Bom Jesus da “Cana Verde”, sem a localização geográfica “dos Batatais”? À primeira vista, sim, porém, se examinamos o quadro político-religioso do final do século XVIII e décadas iniciais do XIX, veremos que a indicação era mais do que apropriada, era fundamental.
                        Ao fazer homenagem ao santo da devoção local - o Bom Jesus da Cana Verde – Sua Majestade cumpria não apenas um dever de reconhecimento, de consideração à fé dos paulistas-mineiros da margem direita do rio Pardo, como impunha o topônimo “dos Batatais” para apontar uma certa e determinada condição geográfico-política. Estado e Igreja andavam juntos na conquista e colonização do Brasil, onde não alcançava a mão do Rei, ali estavam os representantes da religião católica, relação simbiótica mais ou menos tranquila ao longo dos mais de três séculos desde o descobrimento.
                        No calor das discussões da transferência da matriz para o Campo Lindo das Araras, como já vimos, de um lado o Padre Bento José Pereira, de outro Manoel Bernardes do Nascimento e Antônio José Dias, nunca se discutiu a invocação do Senhor Bom Jesus, apenas e tão-somente a mudança física da capela.
                        O culto ao Bom Jesus era bastante antigo em Portugal, remontando à Idade Média, pelo menos. A lenda e a tradição popular, no entanto, indicam que a imagem de madeira do Cristo crucificado teria sido feita por Nicodemus, o amigo de Jesus, logo após a descida da cruz e a partir da modelagem inscrita no Santo Sudário. Nicodemus, segundo consta, fez cinco esculturas; perseguido pelos romanos pagãos jogou as imagens ao mar e pelo mar elas aportaram na Itália, na Síria, duas na Espanha e uma no Espinheiro, litoral de Portugal, no lugar denominado Matosinhos.
                        De início, o culto foi estabelecido no convento de Bouças, transferido para o Porto e finalmente para o outeiro de Matosinhos na altura do século XVI. O Norte de Portugal foi o centro irradiador do culto, atingindo todo o país, a Espanha e, num estágio, posterior, as colônias portuguesas de ultramar.
                        Introduzida no Brasil a devoção ao Bom Jesus de Matosinhos, via dos milhares de portugueses que vinham em busca de riquezas agrícolas (madeiras e cana-de-açúcar) e depois do ouro, vamos encontrar diversas variações em torno da imagem central, a de Matosinhos de Congonhas do Campo, Minas Gerais, segunda metade do século XVIII.  Assim, na sequência de representações artísticas da liturgia da Quaresma, foram surgindo e se adaptando à religiosidade local e popular o Senhor dos Passos, o Senhor da Pedra Fria, dos Aflitos, Ecce Homo, da Paciência, da Flagelação, da Coluna e, naturalmente,  o “nosso” da Cana Verde.     
                        Chegamos ao ponto, a cada freguesia o “seu” Bom Jesus, o orago bem especificado com “nome e sobrenome”. À época da criação da freguesia em Batatais, já vinha correndo até há mais tempo (desde 1803)  um processo de autorização do estatuto da Confraria do Bom Jesus de Matosinhos de Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais. Por fim, o príncipe-regente a reconheceu em fevereiro de 1814, em outubro a freguesia de Casa Branca e em fevereiro de 1815 a de Batatais.
                          Nossas pesquisas indicam um fato que pode ajudar a explicar detalhes da história de Batatais, o de que em Lavras do Funil (atual Lavras-MG) havia permissão para erigir uma capela do Bom Jesus da Cana Verde em 1768 e quem era de lá, quem havia se casado lá em Lavras? Nada menos que um dos protagonistas do célebre “caso da mudança da freguesia”, o português Antônio José Dias!  Teriam sido ele e esposa, Ana Antônia do Espírito Santo os introdutores do culto ao Bom Jesus da Cana Verde em nossa terra?       
Publicado em "A Notícia", 06.07.2012

sábado, 30 de junho de 2012

O primeiro Código de Posturas da “Villa de Batataes”
Sérgio Corrêa Amaro *
                        Corria o ano de 1839. Elevada à condição de vila por lei provincial de 14 de março, a primeira câmara de vereadores, instalada em 16 de setembro, tratou logo de pôr mãos à obra e elaborou o primeiro código de posturas, materializado em sessão de 20 de novembro. O texto foi integralmente aceito pela Assembleia Geral Provincial, o despacho manuscrito de aprovação das posturas, traz “não entraram em discussão nem foram divididas pela Casa” (São Paulo, Tipografia do Governo, 1844, arrendada por Silva Sobral).
                        É muito provável que o nosso primeiro código tenha seguido algum tipo de modelo ou foi copiado com pequenas alterações a partir de outros códigos paulistas, a exemplo de Franca, que já possuía o próprio desde 1833. O certo é que cláusulas do código batataense são encontradas literalmente em outros tantos códigos, anteriores e posteriores, o que demonstra a prática mais ou menos comum da reprodução pura e simples de normas.
                        O município no Brasil tem tradição portuguesa e, dadas as condições histórico-geográficas desde a Colônia, sempre se pautou pela luta por ampla autonomia político-administrativa, acumulando, inclusive, poderes da esfera do Judiciário. Distância da Metrópole, dificuldade de comunicação com os centros do poder, urgência e necessidade de resolver os problemas locais fizeram com que os municípios assumissem as rédeas da governabilidade, mesclando atribuições executivas, legislativas e judiciárias.
                        No momento tormentoso do processo de Independência, os municípios participaram ativamente no que lhes foi possível e apoiando a causa de D. Pedro, primeiro imperador.
                        Não tardou para que a Constituinte (1823) e depois a primeira Constituição brasileira (outorgada em1824) buscassem a centralização do poder a todo custo, com relativa autonomia para o legislativo nas províncias, porém tolhendo violentamente  as câmaras de vereadores. O golpe de morte na autonomia dos municípios, porém, foi a Lei do Regimento das Câmaras Municipais, de 1º. de outubro de 1828.
                        O artigo 24 da referida lei trazia explicitamente: “As Câmaras são corporações meramente administrativas, e não exercerão jurisdição alguma contenciosa”.
                        Sem verbas dos governos ou rendas próprias, aos vereadores restava estabelecer posturas administrativas, ditas “policiais”, disciplinares para o meio urbano, a cidade em oposição ao meio rural, as elites contra os “desclassificados”, os pobres livres e os escravos. Medidas sanitárias foram sendo estabelecidas, o “corpo” da cidade assimilado ao corpo humano, o qual deveria ser “limpo”, sem vícios ou doenças, era o império da “ordem” em nome de um decantado “progresso”.
                        A citada lei de 1828 instituiu a figura do Juiz de Paz, em substituição ao juiz ordinário e que seria eleito juntamente com os vereadores, de quatro em quatro anos. A esses juízes de paz competia fiscalizar a correta aplicação das posturas e conciliar e julgar causas de pequeno valor monetário ou questões meramente locais, um esboço do que hoje conhecemos por Juizado Especial Cível (antigo Pequenas Causas).
                        O temor de rebeliões ou ataques de escravos fazia com que várias disposições do código reduzissem ao máximo o espaço do negro na sociedade branca, proibições que se estendiam ao ir e vir, à permanência em lojas e mercados, ao jogo e a qualquer tipo de ajuntamento. Veja-se, curiosamente, que o artigo 37 proibia “a dança denominada batuque, tanto de dia como de noite nas povoações,  com algazarras que incomode (sic)  os vizinhos e assim mais o toque, o rufo de caixa de guerra; tais ajuntamentos serão dissolvidos e os contraventores a esta postura sofrerão a pena de 4 dias de prisão”.

Em tempo: retificamos informação do artigo anterior. O Padre Bento José Pereira, em verdade, permutou com o Padre Antônio José de Carvalho, da freguesia do Juquerí, atual Mairiporã; a fonte citada está correta.
Publicado em "A Notícia", 29.06.2012

terça-feira, 5 de junho de 2012

BATATAIS, O PADRE E  O BISPO
Sérgio Corrêa Amaro *
                        A História é um nunca acabar de perguntas sem respostas, de respostas à procura de confirmação e de “verdades” geralmente aceitas passíveis de revisão.
                        A transferência da freguesia do Bom Jesus da Cana Verde dos Batatais, como é sabido, se deu ao longo de um processo eclesiástico acionado pelo Padre Bento José Pereira, pároco efetivado pouco tempo após o falecimento do Padre Manuel Pompeu de Arruda, em 19 de setembro de 1820.
                        A questão se arrastou junto ao Bispado de São Paulo de fevereiro de 1821, data da provisão para ereção de uma nova matriz, portanto sede da freguesia, passando pela doação do terreno, em agosto de 1822, até o início das obras da nova capela, em 1823.
                        O conflito se dera pela determinação da mudança da freguesia, de um lado o novo pároco “mudancista” P. Bento José Pereira e moradores e do lado oposto Manoel Bernardes do Nascimento, o alferes Antônio José Dias, ambos prósperos fazendeiros, acolitados por bom número de moradores do povoado.
                        O Bispo Dom Mateus de Abreu Pereira (1742-1824) manteve a disposição  de 1821 e a sede da freguesia foi efetivamente  transferida para o Campo Lindo das Araras, pondo fim à pendenga. O padre Bento acabou levando a melhor, porém a alegria durou pouco...
                        TAMBELLINI (A freguezia dos Batataes, São Paulo; Carthago, 2000) indaga onde teria ido parar o padre Bento José Pereira, vencedor na refrega da transferência da freguesia. Pois bem, novas pesquisas indicam que teria permutado de paróquia com José da Cunha Mello, vigário da igreja de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, de Ouro Preto, Minas Gerais, tudo conforme requerimento à Mesa de Consciência e Ordens publicado no Diário Fluminense número 18, de 21 de julho de 1824.* vide rodapé
                        Não deixa de causar certo espanto o fato de que Dom Mateus, Bispo de São Paulo e que apoiou o nosso Padre Bento José Pereira, tenha morrido pouco antes, em maio de 1824. Seria o falecimento do bispo a causa do pedido de transferência ou permuta do vigário de Batatais, agora sem suporte político de um superior hierárquico?
                        No calor da disputa pela transferência da sede da freguesia, e aqui acompanhamos o historiador Francisco José de Andrade no estudo das capelas e da “governamentalidade” em Minas Gerais para a segunda metade do século XVIII (Vária História, Belo Horizonte, vol. 23, n° 37: p. 151-166, Jan/Jun 2007), vislumbra-se uma queda de braço entre um potentado local - Manoel Bernardes do Nascimento, a tentar garantir por meios e modos a representação material e simbólica do poder conferida pela presença de uma capela ao seu alcance -  e  um  padre recém-empossado, disposto ao confronto desde o início.
                        A cronologia dos fatos parece falar por si mesma: morre o Padre Manoel Pompeu de Arruda, em setembro de 1820, seguem no comando da paróquia três outros padres no curto prazo de um ano; a provisão para ereção da nova Matriz é de 25 de setembro de 1821; Germano Moreira e Ana Luísa fazem doação de terras em agosto de 1822; a petição de autorização da mudança deve ter sido escrita entre esta data e começos de 1823, pois o requerimento e abaixo-assinado contrários à mudança, encabeçados por Manoel Bernardes do Nascimento e Antônio José Dias são de fevereiro de 1823; a resposta do Padre Bento não se fez esperar, foi meticulosamente detalhada em março de 1823, em linguagem sem meias-palavras, desmontando peça por peça as razões contrárias.
                        A construção da nova Igreja foi, pois, iniciada em 1823 ou mesmo logo em seguida à doação de Germano Moreira. O ato solene de benzer a nova Igreja para o culto se deu por força de despacho de 19 de maio de 1838.
                        Em cenário mais amplo no tempo e no espaço se destaca a figura de Dom Mateus de Abreu Pereira, português de nascimento, 4º. Bispo de São Paulo, participou ativamente na vida política brasileira, apoiou o movimento pela permanência de D. Pedro no Brasil e o processo de Independência, foi governante interino da capitania de São Paulo em quatro ocasiões, acumulando as funções de líder civil e religioso. 
                         Nesse ponto talvez tenha passado despercebido aos olhos de muitos o fato de que a criação da freguesia de Batatais (1815), a determinação exata da jurisdição eclesiástica, em disputa com a de Casa Branca (1818), a mudança da Matriz (1821-23) tiveram todos a participação ativa de Dom Mateus, bispo a partir de 1797 até sua morte em 1824 e governador interino, em triunvirato, exatamente nas épocas que tramitavam os processos citados.
                        Se permanece em aberto a questão dos reais interesses de Manoel Bernardes do Nascimento - nem tanto religiosos como se supõe -  também merece mais pesquisas a atuação de Dom Mateus de Abreu Pereira em nossa cidade e região.
Publicado em a Notícia, 15.06.2012

* retifico a informação: O Padre Bento José Pereira realmente permutou com o Padre Antônio José de Carvalho, da Freguesia de N. Sra. do Desterro  de Juqueri, atual Mairiporã, lá permanecendo até outubro de 1828. A fonte citada está correta.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

NOSSAS RAÍZES MINEIRAS - Aiuruoca

Sérgio Corrêa Amaro *
                        A segunda leva de povoamento de Batatais se deu realmente com a chegada de habitantes das Minas Gerais, homens em busca de terras para plantio de roças e campos de pastagens ou, muito frequentemente também, famílias inteiras que se deslocaram de vários pontos para a região conhecida por Sertão do Rio Pardo.
                        Seja pela decadência do ouro, que mal explica a migração, seja pela necessidade de buscar mais terras para expansão das atividades rurais de produção para o comércio regional, o fato é do final do século XVIII para as décadas iniciais do século seguinte os “entrantes” atravessaram as margens do Sapucaí-Mirim e do Pardo, dando conformação a uma extensa faixa na divisa dos atuais Estados de São Paulo e Minas Gerais, pousos, freguesias e vilas que viriam a ser, no futuro, Franca, Batatais, Ituverava, Igarapava, Patrocínio Paulista, dentre outras.
                        Num primeiro momento, os mineiros se dirigiam ao Sertão da Farinha Podre, atual região do Triângulo Mineiro, pertencente à província de Goiás no século XVII, só muito mais tarde reconhecido como parte integrante de Minas Gerais.
                        O momento seguinte – nos finais dos anos 1700 – é o do início da migração em direção ao Sertão do Rio Pardo, terras em quantidade e qualidade, a roda econômica tomava novo impulso: concessão de sesmarias, elevação de freguesias, posse pura e simples de áreas consideradas devolutas e posterior adequação às normais jurídicas, compra e venda, plantio de milho e algodão, criação de gado bovino e cavalar, produção de toucinho, queijos e tecidos rústicos.
                        O casal Germano Moreira e Ana Luísa, doadores em 1822 do patrimônio do Bom Jesus da Cana Verde, devem ter vindo para Batatais em algum momento entre 1801 - ano em que se casaram em Aiuruoca - e  1812, pois naquele ano foram recenseados já estabelecidos, com terras nas fazendas São Pedro e Santana.
                        Germano Moreira era natural de Barbacena, já comentada em um de nossos artigos anteriores e Ana Luísa, filha de Luís Fernandes Chaves e Maria da Conceição,  era nascida em Aiuruoca, pequena cidade do Sul de Minas, conhecida como “paraíso dos ecoturistas” entre outros atributos igualmente apreciáveis.
                 De Aiuruoca vieram outras tantas famílias para o segundo povoamento de Batatais, a exemplo da família Arantes, tronco de Altino Arantes, um dos filhos mais ilustres de nossa terra.
                        Aiuruoca é aportuguesamento de topônimo tupi, junção de ajuru (papagaio) e oca (casa), traduzido para “casa de papagaio”, “papagaio criado na pedra” ou “pedra do papagaio” (CARVALHO, 2011); outro autor trata como “terra das araras” (SILVA, 1966, citado por Carvalho, 2011). Não é estranha coincidência o fato de a terra natal de Ana Luísa ser conhecida como “terra das araras” e as terras doadas em Batatais serem no “Campo das Araras”? Talvez tenhamos aí um interessante campo de pesquisa toponímica.
                        Aiuruoca teria sido descoberta por volta de 1705/1706 pelo bandeirante paulista João de Siqueira Afonso em busca de ouro nas cabeceiras do rio Grande, foi elevada a vila em 1834, com sede e mais paróquias de Turvo, adquirindo ou perdendo Bocaina, Livramento, Guapiara, Serranos, Bom Jardim, Alagoa e São Vicente Ferrer ao longo do século XIX, chegou a município e cidade em 1868(PARANHOS, 2005).
                        Aiuruoca tem população de pouco mais de 6.000 habitantes, área de 651 km2, está situada a 989 metros acima do nível do mar, de relevo bastante movimentado, o ponto mais alto é o Pico do Papagaio, com 2.293 m, o turismo é forte nas trilhas, cachoeiras, esportes radicais, matriz de N. Senhora da Conceição (1726), festas religiosas, esoterismo, pousadas e hotéis que oferecem tranquilidade, conforto e a tradicional comida mineira e o “Carnaval fora de época”, realizado em praça pública uma semana antes do Carnaval oficial, evento que atrai milhares de turistas, mais um ponto em comum com  Batatais.
                        Pequena joia da Natureza nas Minas Gerais, Aiuruoca merece uma visita; a ela os batataenses podem se ligar por mais de um motivo: histórico, ecoturístico, esotérico e - por que não? -  curtir o carnaval de lá primeiro e depois aqui.
publicado em “A Notícia”, 18.05.2012   

sábado, 12 de maio de 2012

MÃES DO LADO DE FORA DO PARAÍSO

Sérgio Corrêa Amaro *
                        A figura da mãe impõe amor filial, profundo respeito e até veneração. Ao longo da História, porém, encontramos alguns casos de mulheres que não seguiram exatamente o modelo da abnegação e do desprendimento dos bens materiais e do poder.
                        Se nos versos do esquecido Coelho Neto (1864-1934), “ser mãe é andar chorando num sorriso, ser mãe é ter um mundo e não ter nada, ser mãe é padecer num paraíso” tão exaustivamente repetidos que acabaram virando clichê -  talvez um tanto piegas para os dias que correm -  do outro lado do paraíso houve mães que se mostraram totalmente avessas a qualquer sentimento maternal, ora se aliando a um filho em luta contra outro, ora guerreando abertamente pelo poder político ou semeando a discórdia na família.
                        Na formação de Portugal, em plena Idade Média, a condessa-viúva e rainha Dona Teresa de Leão (1080 – 1130), aliada ao amante galego, o Conde Fernão Peres de Trava, pretendeu tomar para si o domínio do espaço galaico-português, em detrimento do filho e herdeiro, o futuro rei Afonso Henriques. O jovem príncipe, fundador do reino de Portugal, arregimentou tropas de nobres favoráveis à sua causa e derrotou ambos na Batalha de São Mamede, em 1128. Em fuga com o Conde Fernão Peres, Teresa de Leão veio a falecer pouco mais tarde. Lenda portuguesa muita antiga dizia que o rei Afonso I havia batido literalmente em sua mãe Teresa, o que nunca passou de mito; ao contrário, a rainha derrotada chegou em segurança à Galiza e anos depois o rei voltou às boas com o “padrasto” galego.
                        Intrigas na Corte, devassidão, ambição, cobiça pelo poder marcaram a trajetória da tristemente famosa Carlota Joaquina, espanhola de nascimento, unida por casamento político a Dom João VI, regente e depois Rei de Portugal, Brasil e Algarve.
                        Bem antes da vinda da Família Real ao Brasil em 1807, as relações conjugais de D. João e Carlota já eram péssimas e viviam separados, ela confinada no Palácio de Queluz, ele governando no Palácio de Mafra. Momentaneamente reconciliados por ocasião das invasões napoleônicas e da instalação da Corte no Rio de Janeiro (1808), Carlota Joaquina voltaria a tramar contra o marido e contra a Constituição portuguesa, no retorno a Portugal em 1821 e anos seguintes, insuflando as revoltas conhecidas por Vilafranca e Abrilada, em ambas o partido de Carlota Joaquina foi derrotado e a rainha rebelde afastada dos círculos do poder.
                        Ainda uma vez Carlota Joaquina pretendeu o restabelecimento da monarquia absoluta, quando da subida ao trono de Portugal de seu filho preferido, o ultracatólico e conservador Dom Miguel, irmão mais novo do imperador do Brasil, D. Pedro I. Na luta que se estabeleceu entre irmãos, D. Miguel e D. Pedro, Carlota Joaquina apostou todas as fichas no preferido e perdeu novamente. Ao que consta, o próprio D. Miguel foi aos poucos se desvencilhando de uma mãe incômoda, morta triste, amargurada e longe do poder, em 1830, alguns falam em envenenamento provocado ou suicídio.
                        A lista das mães “desnaturadas” chega facilmente à casa das dezenas, ambiciosas algumas, como Catarina de Médici (1519-1589), envolvida nos bárbaros episódios da Noite de São Bartolomeu - feroz perseguição e morte de milhares de protestantes pelos católicos – calculista, implacável, tramou e conseguiu a morte de Margarida de Navarra e talvez até de um ou alguns dos próprios filhos, mortos por envenenamento, arte da qual era especialista. A lista prossegue com Maria de Médici (1575-1642), outra italiana e igualmente rainha-consorte da França que tentou, sem conseguir, afastar do trono o filho, o rei Luís XIII ; na Antiguidade mitológica da Grécia encontramos Medéia, a infeliz esposa traída de Jasão  e que mata os próprios filhos, não por fúria, mas para fazer sofrer o marido infiel; nos textos dos Evangelhos lemos as referências principais sobre a “dupla infalível” composta por Herodíade e Salomé, mãe e filha, em conluio criminoso que terminou com a decapitação de João Batista.
                        Curiosidades históricas à parte, se estas mães ficaram do lado de fora do Paraíso, com toda a certeza todas as demais, heroicas e devotadas, célebres ou anônimas, têm cadeira reservada no grande espetáculo da condição humana!
publicado em A Notícia, 12/05/2012

domingo, 6 de maio de 2012

Você sabe com quem está falando?

Sérgio Corrêa Amaro *
                        A pergunta, quase sempre em tom esnobe ou orgulhoso, pode ter várias respostas. Não é o caso, aqui, de tratarmos o tema como estudado  pelo renomado  antropólogo Roberto DaMatta em suas análises das regras e costumes brasileiros.
                        A questão é se sabemos (ou não) realmente com quem estamos falando no que refere a apelidos, nomes de família, alcunhas ou patronímicos.
                        Patronímicos são sobrenomes derivados do nome do pai; apelido é o mesmo que “nome de família”, em Portugal em particular e para a genealogia como termo técnico. A alcunha designa uma característica positiva ou negativa de uma pessoa, um lugar ou até de um objeto. A cidade de Cláudio, em Minas Gerais, é conhecida como cidade das alcunhas, pois a maioria de seus habitantes tem um apelido. Curiosamente, Cláudio  - quer dizer manco ou coxo, de claudicante, claudicar, já a cidade deriva do nome de um escravo -  tornou-se vila em 1911, independente de Oliveira, município mineiro e nome de família adiante citado.
                        O assunto dos sobrenomes é extenso, vamos abordá-lo em linhas gerais, dada a limitação de espaço e para que sirva, ao menos, como indicativo nas pesquisas pessoais de genealogia e história familiar.
                        O célebre sobrenome SILVA, o mais comum no Brasil e em Portugal, tem sua origem em Dom Guterre Alderete da Silva, que adotou o apelido para a linhagem. Esse Guterre Alderete nasceu por volta de 1040, filho de Pelayo Gueterres, senhor da Honra e da Torre de Silva, em Valença, Portugal. Silva é um sobrenome toponímico, isto é, derivado do nome de um lugar, no caso, silva provém de floresta ou bosque, em latim (veja silvícola e selvagem). Várias localidades em Portugal e Espanha se chamam Silva. Esses primeiros do nome Silva eram nobres galegos que passaram para Portugal no séquito do conde D. Henrique (1066-1112), antes mesmo do nascimento da nacionalidade portuguesa.
                        A popularidade do apelido Silva vem desde o século XVII, em Portugal e, por consequência, no Brasil. Há registro de um Pedro da Silva, alfaiate estabelecido em São Paulo em 1612.
                         Portugueses degredados querendo começar uma vida nova no Brasil adotavam o sobrenome Silva proporcionado pelo relativo anonimato e também milhares de escravos africanos foram batizados por padres católicos que lhes davam um nome, geralmente de seu dono, acrescido de um sobrenome, o mais comum era mesmo o Silva.
                        O segundo sobrenome mais comum no Brasil é, sem dúvida, SANTOS, de origem igualmente portuguesa, era dado, de início, aos nascidos em 1º. de novembro, dia de Todos os Santos ou às crianças que nasciam ou eram abandonadas no Hospital de Todos os Santos, em Lisboa, construído entre 1492 e 1504, também conhecido por Hospital Real, Grande ou dos Pobres. Este hospital desapareceu no terremoto de 1755.
                        O sobrenome português OLIVEIRA também é de origem geográfica, do lugar em que se plantavam muitas oliveiras, as árvores das azeitonas (oliva), antigas e nobres famílias ibéricas ostentavam o apelido; o primeiro a adotá-lo como nome de família foi Pedro de Oliveira, senhor do Morgado de Oliveira, pai de Martinho Pires de Oliveira, arcebispo de Braga em 1306.
                        Da mais antiga vila de Portugal, Ponte de Lima, distrito de Viana do Castelo,  provém o nome de família LIMA, pelo rio do mesmo nome, que nasce na Galiza, Espanha,  com o nome de Limia. O primeiro do nome foi D. João Fernandes de Lima (1170-1245), chamado “O Bom”, natural daquela vila. Lima, no latim,  quer dizer paliçada ou cerca, servia para designar limites ou fronteiras, se for proveniente do celta significa “esquecimento”.
                        Até onde vimos, não há por que considerar um sobrenome “comum” ou “popular” como sem origem ou de origem desconhecida ou “menos nobre” que esse ou aquele, as informações da História aí estão a confirmar, apontando interessantes caminhos de investigação.