domingo, 10 de fevereiro de 2013

Sangue, amor e terror no Carnaval
Sérgio Corrêa Amaro
                         A história e a literatura do carnaval estão fartas de  episódios alegres, picarescos, de luxúria, de máscaras e brincadeiras, músicas ruidosas e francamente provocadoras, porém...nem tudo são flores, confetes e serpentinas no reino de Momo...
                         O baile oferecido por Charles VI , rei de França, em 28 de janeiro de 1393 acabou em tragédia. Para festejar o terceiro casamento de uma das damas de honra da esposa e rainha Isabel da Baviera, o costume ordenava um “charivari”, palavra que existe até hoje, uma festança em que os convidados se divertiam às custas de uma noiva que fosse viúva e tornava a casar  ou velha demais para casar. Muito comeram, muito beberam, muito dançaram. Lá pelas tantas da madrugada, Charles VI sentiu tédio, achando tudo certinho e cavalheiresco demais e propôs a um grupo de cinco nobres amigos que fizessem uma farsa à fantasia. Os seis “espertos” tiraram as roupas pesadas de inverno, passaram resina (ou piche)  pelo corpo, se cobriram de estopa e penas; seria um bando de “selvagens” e acorrentados uns aos outros, à exceção do Rei.
                         Antes da entrada triunfal, o rei ordenara que se abaixassem as luzes do salão e o bando surpreende a todos, gritando, urrando, como se fossem, de fato, selvagens de algum continente perdido. Mulheres se assustam, homens se colocam em posição de defesa, outros riem e logo a cena volta quase ao normal, prosseguindo o baile. Sem saber de nada, entram no salão o irmão e o tio do rei, duques de Orléans e de Berry. Na semiobscuridade, todo mundo já meio embriagado pelo vinho, se aproximaram dos “selvagens” com tochas, tentando ver quem estava sob as máscaras e...o fogo se espalha rapidamente pelas fantasias de materiais altamente inflamáveis, a confusão se instala, ainda mais trágica com cinco homens em chamas,  acorrentados uns aos outros:  dois morrem na hora, dois morreriam dias depois, um escapa por se jogar numa enorme bacia de água. Uma das tias do rei, Joana de Boulogne, duquesa de Berry, teve a presença de espírito de cobri-lo rapidamente com suas enormes saias, abafando o fogo e salvando a vida do infeliz rei.
                         Crises anteriores de demência, agravadas pela tragédia do “Bal des Ardents” e outros ataques de fúria,  progressivamente Charles VI chegaria à loucura completa,  em meio à Guerra dos Cem Anos, recebendo ainda em vida o cognome de Charles “Le Fol” (o louco).       
                         Muito mais tarde, ainda na França, um baile de máscaras que se tornou célebre foi o Bal des Ifs ou Baile dos Teixos, árvore originária de climas temperados como a Europa, bastante rara no Brasil, mas que se presta a uma arte de nós batataenses muito conhecida: a topiaria.
                         A política de aproximação dos ramos Bourbon de França e Espanha foi construída, em parte, por casamentos reais. O rei da França, Luís XV (1710-1774), arranjou o casamento de seu filho Luís Ferdinando com a prima Maria Teresa de Bourboun, filha de Filipe V, da Espanha. Nos dias seguintes ao casamento religioso, Luís XV ofereceu grandes festas no Palácio de Versalhes, a mais brilhante foi o Bal des Ifs em 25 de fevereiro de 1745 para “apenas” 15.000 convidados. Período de Quaresma, proibição absoluta de comer carne, nem por isso Luís XV deixou por menos, oferecendo suntuoso banquete de peixes, pratos frios, vinhos, frutas, doces e bolos, verdadeira operação de guerra para alimentar tanta gente às custas dos impostos do combalido Tesouro francês.
                         Desejando permanecer incognito (desconhecido, em italiano, como se dizia no carnaval) na multidão, Luís XV e mais 7 nobres se fantasiaram de “arbustos” de teixo, como se fossem topiarias vivas, marcantes  nos jardins de Versalhes. À entrada no salão nenhum dos 8 personagens emitia uma palavra, os 8 se portavam como se fossem o próprio rei, reverenciavam as damas, arrancavam suspiros das candidatas ao cargo vago de amante número 1 do Rei que, nesse baile, se tornou irremediavelmente apaixonado da quase-descasada Jeanne-Antoinette Poisson, a Madame de Pompadour.
                         Dos casos “reais”, sem trocadilhos, passemos aos casos ficcionais da melhor literatura brasileira “de carnaval”, os dois contos trazidos aqui encontram-se publicados e disponíveis na internet.
                         Aníbal Machado (1894-1964), mineiro de Sabará, foi escritor, homem de teatro, professor, bacharel em Direito e, acreditem, futebolista titular (marcou o primeiro gol da história do Atlético Mineiro, em 1909). Diríamos hoje: um agitador cultural, das décadas de 1920 a 1950.
                         Um dos contos mais publicados e reconhecidos de Aníbal Machado é “A morte da porta-estandarte”, o personagem principal não tem nome, é chamado apenas de “negro”, o cenário é o Rio de Janeiro do carnaval antes do apogeu das escolas de samba, com blocos e cordões na Praça Onze e Praça da República. O negro tem medo, o negro é inseguro, o negro é o amante-namorado morto de ciúme, um Otelo moderno; Rosinha, a porta-estandarte, a operária negra que naquela terça-feira de carnaval é a rainha, atrai os olhares dos homens, é cobiçada e brilha mais que as outras mulheres da multidão dançante.
                         A tragédia do conto é a própria antítese do carnaval, o personagem do negro se recusa a aderir à inversão carnavalesca homem/mulher, pobre/rico, patrão/empregado, branco/negro e o punhal cravado no corpo de Rosinha é a chave da porta de entrada do assassino num mundo que somente ele domina, o de seus pensamentos e, talvez, o mundo por trás dos olhos fechados de Rosinha, que sorri mesmo morta, sorri de paixão.
                         Para os apreciadores de certa dose de terror, sangue e depravação, João do Rio serve na medida exata. Pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921) foi escritor, tradutor, teatrólogo e cronista carioca, talvez o nosso melhor modelo de Oscar Wilde, de quem se aproximava por mais de um motivo, um dândi refinado e odiado/amado por muitos contemporâneos. Seu enterro teve acompanhamento  mais de 100 mil pessoas.
                           Ocupou a cadeira número 26 da Academia Brasileira de Letras, considerado escritor prolífico para quem morreu perto dos 40 anos, de obra variada e instigante esteticamente, no conto “carnavalesco” publicado em 1908 chamado “O bebê de tarlatana rosa” provoca arrepios ou náusea em quem o lê.
                         Tarlatana é um tecido fino, tipo de filó, do qual se fazem fantasias de carnaval. O personagem Heitor de Alencar narra sua história em primeira pessoa que  deseja, como muitos, chafurdar na lama do carnaval “plebeu” do Rio de Janeiro, em meio a mulheres e vícios. Sai em grupo pequeno de amigos e moças “de vida airada” procurando prazeres inconfessáveis. Numa das noites de carnaval esbarra numa mulher fantasiada de bebê com um nariz de papelão, sem nome. Na terça-feira gorda, sem conquistar nenhuma mulher, por mais ralé que fosse, encontra novamente a moça fantasiada de bebê e sai com ela na volúpia dos beijos e afagos da madrugada de quarta-feira de cinzas. Incomodado o tempo todo com o nariz falso de papelão, que esconde parte do rosto da moça, arranca-o com a mão direita e descobre a bárbara realidade.
Qual será?         
                        
Publicado em "A Notícia", 8 de Fevereiro de 2012

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

É com esse que eu vou: entrudo e carnaval em Batatais
Sérgio Corrêa Amaro
                         Rei Momo e sua corte às portas da cidade trazem um decreto com força de lei e apenas três artigos: 1º. Fica estabelecido o Reinado da Alegria e todos os súditos serão chamados de foliões; 2º. Todas as fantasias são permitidas menos as de pirata, índio, havaiana, palhaço, baiana, odalisca e bebê chorão; 3º. As despesas com confete, serpentina, máscaras e cerveja correrão por conta de cada um, revogando-se as disposições em contrário até quarta-feira de cinzas.  Assinado: Zé Pereira, Ministro Plenipotenciário das Diversões e sua Majestade, o Rei Momo I e Único. Dado e passado nesta vila e real cidade de Batatais em fevereiro de 2013.
                         Nosso maior memorialista, Jean de Frans (José Augusto Fernandes), além do celebrado “Bom Jesus da Cana Verde - Batatais de Outrora” (1939) publicou uma série de artigos para o Correio Paulistano,  com lembranças, fatos e pessoas do entrudo e do carnaval de Batatais.
                         O entrudo foi introduzido no Brasil pelos portugueses colonizadores, diz-se, até, que teria vindo ao tempo das caravelas. O fato é que o entrudo foi dominante durante todo o período colonial, caindo em desuso, por um ou outro motivo, até ser destronando completamente pelo Carnaval, primeiro com bailes de máscaras, o corso de carruagens (depois com automóveis, símbolos de status social) os ranchos, préstitos e blocos, ascensão do samba e da gente de cor, como se dizia, nas grandes manifestações populares e da classe média, as primeiras escolas de samba, ritmos próprios como as inesquecíveis marchinhas, os bailes de salão e os desdobramentos regionais (trios elétricos, samba paulista, frevo no Nordeste) até o carnaval como o conhecemos hoje.
                         Em Portugal não houve tal separação, o entrudo permaneceu mais ou menos o mesmo, especialmente no Norte, com foco na região do Minho e em pequenas vilas e aldeias, enquanto o carnaval, a bem dizer, nunca foi unanimidade nacional, ocorrendo apenas em poucas e maiores cidades, copiando moldes italianos e franceses, igualmente localizados e bem delimitados.
                         Na revista carioca de Paula Britto (1809-1861) chamada “A marmota na Corte” número 45 de fevereiro de 1850 já se clamava pelo fim do “desagradável” entrudo e pela definitiva permanência dos bailes de máscaras, muito mais “europeus” e “civilizados” como o Rio, sede da Monarquia, pretendia ser nos trópicos.
                         Jean de Frans aponta em saborosa crônica publicada em setembro de 1942 o que fôra o entrudo na pequena cidade de Batatais do seu tempo de menino e rapaz, décadas finais do século XIX. A documentação primária, naturalmente, é escassa e ao fio da memória de Jean de Frans vamos colecionando apontamentos da imprensa da época, digitalizada pelo belíssimo projeto da Biblioteca Nacional para conservar os periódicos extintos e leituras de autores que se dedicaram ao tema, como Maria Isaura Pereira de Queiróz (1992) e Roberto DaMatta (1997).
                         A memória do saudoso jornalista batataense, morto em 1947, assinala o entrudo com os “encamisados”, homens a cavalo, vestidos com túnica e encapuzados que saíam nos domingos anteriores ao carnaval em silêncio e com archotes, seguidos por um “zé-pereira”, tradicional do entrudo português, barulhento, promovendo a maior algazarra e a indefectível cançoneta que até hoje é tocada nos salões (aqui em Batatais é ela que abre e fecha cada seleção de marchinhas) verdadeiro “hino” do carnaval, composto por Francisco Correia Vasques em 1869, em comédia-paródia do “Les Pompiers de Nanterre”, intitulada “Zé-Pereira Carnavalesco”, estrondoso sucesso no Rio de Janeiro e no restante do Brasil:
Viva o Zé-Pereira
Que a ninguém faz mal
Viva a rapaziada
No dia do Carnaval!
                         O Rio de Janeiro ditava a moda carnavalesca e os centros urbanos iam atrás, Batatais sempre acompanhando de perto: assim foi com os engraçados e odiados banhos de água, de farinha, de pós coloridos, as batalhas de limões-de-cheiro (bolinhas de cera com líquido perfumado), as trocas de flores, os carros alegóricos, as “críticas”, em geral alegorias ou fantasias para falar mal de políticos e manda-chuvas locais, máscaras de animais, dominós, príncipes e donzelas, palhaços e tudo o que se pudesse arranjar como disfarce e brincadeira.
                         Figuras do entrudo e do carnaval em Batatais: Joaquim Augusto da Cunha e Silva, subdelegado, capitalista e rico fazendeiro dono de escravos; os irmãos Celso e Antônio Garcia, coronel Manoel Teodolindo do Carmo e, quem diria, Dr. Joaquim Celidônio e Washington Luís, introdutores da moda da farinha de trigo e do carrapicho, o farmacêutico Oscar Porto, Joaquim Augusto e até o velho capitão José Umbelino Fernandes (avô de Jean de Frans).
                         As inversões de que tanto falam antropólogos e outros estudiosos do carnaval brasileiro - homem vestido de mulher, rico se passando por pobre e sujo, pessoas sérias pregando peças em todo mundo -  também tinham adeptos em Batatais, um caso célebre lá por 1897 foi o de um oficial de justiça, João Aprígio de Toledo, fantasiado de bailarina, com máscara cor-de-rosa, objeto dos amores inconfessáveis do Promotor...  que quando descobriu a bigodeira por trás da máscara foi um Deus-nos-acuda!
                         Para tudo terminar na Quarta-Feira...Na noite da terça-feira gorda era realizado com grande ruído pelas ruas  o “enterro dos ossos”, chorando o fim do carnaval, assimilado ao diabo e à chegada iminente de Dona Quaresma, retrato da morte e da abstinência forçada de carnes e bebidas, os troca-flores e mascarados passavam um verdadeiro esquife ou caixão, dentro do qual as famílias depositavam prendas diversas, galinhas, pastéis, doces e vinho, atrás de tudo, claro, vinha mais uma vez o zé-pereira...e a farra ia até altas horas,  madrugada adentro, muita gente comia e bebia no “velório” e muita gente ia ao baile. Os mais animados iam às duas festas!
Publicado em "A Notícia", 25.01.2013