domingo, 29 de julho de 2012

Batatais e Caconde: destinos cruzados
Sérgio Corrêa Amaro
                        Até a História tem suas histórias, impossível não pensar assim quando nos deparamos com determinados acontecimentos, entrelaçando pessoas, fatos e situações aparentemente sem relação alguma.
                        É o caso de Batatais e Caconde, a mais antiga cidade do Oeste paulista, uma das quinze estâncias climáticas do Estado de São Paulo, atualmente com cerca de 19 mil habitantes.
                        As origens da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Bom Sucesso do Rio Pardo se prendem à descoberta de ouro por Pedro Franco Quaresma, pelos idos de 1755 no local chamado Bom Sucesso, a 14 quilômetros do centro de Caconde, área que faz parte da atual Mococa (Borda do Mato).
                        A notícia de ouro na região se espalhou mais rapidamente durante o governo do Morgado de Mateus, Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, à frente da recém restaurada Capitania de São Paulo (1765-1775); a região vai recebendo povoação, homens em busca do precioso minério (que acabou não correspondendo ás expectativas) e, sesmeiros, posseiros e  fazendeiros de plantar e criar.
                        O chamado “Descoberto” do Bom Sucesso terá sua freguesia em março de 1775, fundada pelo pároco Francisco Bueno de Azevedo sob as ordens do Bispo de São Paulo, Dom Manuel da Ressurreição. Este mesmo padre Francisco Bueno de Azevedo fará muitas e muitas vezes o “Caminho de Goiás” para proceder à “desobriga”, dando os sacramentos do batismo e do matrimônio em Batatais de 1781 a 1789 (CAMPANHOLE, citado por TAMBELLINI, 2000).  A freguesia foi desmembrada da vigararia de Mogi Mirim e da paróquia de Mogi Guaçu.
                        Se o ouro de Caconde não foi o que se esperava, houve esvaziamento populacional naquela região, os poucos que ficaram se dedicavam à agricultura de subsistência e pequeno comércio; a freguesia foi mantida e  igualmente a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição que, porém,  ia aos poucos conhecendo o abandono até quase arruinar-se completamente. Espiritualmente, Caconde se dirigia à vizinha Cabo Verde,  em Minas Gerais.
                        No entanto, se o resultado da mineração aurífera foi acanhado, novo ciclo agro-pastoril começa a desenhar-se em Caconde por volta de 1810 e 1811, oportunidade em que são passadas muitas cartas de sesmarias, terras são apossadas e outras havidas por compra.
                        Fazia-se necessária a restauração da freguesia, os fiéis católicos de Caconde (bairro Bom Sucesso, na época) eram obrigados a ir a Cabo Verde, distante nove a dez léguas.
                        Será por iniciativa do Alferes Manuel Alves Moreira Barbosa e do capitão Alexandre Luís de Melo o movimento para restaurar a freguesia e erguer nova capela, a partir de agosto de 1818, junto ao visitador Padre Antônio Marques Henrique na passagem pastoral por Cabo Verde; em fevereiro de 1820 pedem o patrocínio do capitão-mor de Mogi Mirim, José dos Santos Cruz, para que interceda a favor daquelas “300 almas”. Em 28 junho de 1820, o Bispo Dom Mateus de Abreu Pereira assina a provisão ordenando a restauração da freguesia e a construção de uma nova capela.
                        Coube ao casal Miguel da Silva Teixeira e Maria Antônia dos Santos, a pedido do alferes Manuel Moreira Barbosa e outros, a honra de doar 103 alqueires de terras destacados de sua Fazenda Bom Jesus para o patrimônio da freguesia de Nossa Senhora da Conceição, então restaurada. Só para constar, Maria Antônia era natural de Lavras (a mesma do Bom Jesus da Cana Verde, como já vimos).
                        É hora de dar cores mais vivas ao nosso quadro fático-histórico. Quem foi o incentivador da restauração da freguesia de Caconde, o alferes-comandante Manuel Alves Moreira Barbosa? Nada menos que um dos irmãos de Germano Moreira!
                        Manuel Alves Moreira Barbosa teria nascido por 1780 em Aiuruoca (ou em Barbacena, como o irmão Germano ou em Serranos, não se sabe ainda ao certo), filho de Hipólito Moreira dos Santos  e Maria Vicência Alves de Jesus, casou-se em 1815 com Constância Pereira da Mota, com geração;  realizou por sua conta um interessante recenseamento populacional em 1822; foi a primeira autoridade civil, como vice-prefeito de Caconde junto à Câmara de Mogi Mirim (1836).
                        O irmão mais novo (Manuel) teria influenciado de alguma forma o irmão mais velho (Germano Moreira) para que também doasse terras na constituição do patrimônio da freguesia do Bom Jesus da Cana Verde de Batatais em agosto de 1822? Germano Moreira e sua mulher Ana Luísa foram movidos pela fé pura e simples, pretendiam apenas respaldar de legalidade suas terras, decorrente de questionamento judicial de terceiros em 1817 ou seguiram o exemplo do irmão e cunhado Manuel Alves Moreira Barbosa na semeadura de freguesias no sertão do Rio Pardo? 
Publicado em "A Notícia", 27.07.2012

domingo, 15 de julho de 2012

BOM JESUS DE BATATAIS: O VIAJANTE DA ARMÊNIA
Sérgio Corrêa Amaro *
                        A data de 6 de agosto, festa do padroeiro de Batatais e de muitas outras cidades no Brasil e no mundo, sob as várias invocações do Bom Jesus, tem origens bem remotas que vão muito além da própria religiosidade cristã e católica.
                        Na cristianização da Armênia, São Gregório, o Iluminador, em luta religiosa e política com o príncipe Tridates III consegue, no ano de 301 d.C. que a Armênia seja o primeiro país a adotar oficialmente o cristianismo, bem antes das permissões do imperador Constantino.
                        A prática de adaptar os costumes pagãos dos armênios fez com que o culto da deusa da fertilidade e da castidade Anahit, a dos festivais coloridos e musicais do Vardavar, fosse equiparado à Transfiguração do Senhor, comemorada desde sempre em 6 de agosto;  mantinha-se a data, trocava-se a devoção.
                        Da Armênia para os Balcãs e para Roma e toda a cristandade foi questão de tempo.
                        O auge do culto ao Senhor do Monte Tabor, o da Transfiguração, atinge o máximo quando o Papa Calisto III (Afonso Bórgia, 1378-1458) institui que o dia 6 de agosto seria para sempre consagrado à memória da vitória cristã sobre os turcos no Cerco de Belgrado (capital da atual Sérvia) em julho de 1456       . O papa, que muito lutou para organizar uma cruzada contra os turcos muçulmanos, tendo obtido pouco apoio dos reis europeus, considerou a vitória católica como fundamental para barrar a entrada muçulmana na Europa, mantendo-os afastados por pelo menos 70 anos.  Este mesmo papa Calisto III foi o que reconsiderou o caso da condenação de Joana D´Arc e criou o célebre regime do Padroado com os reinos de Portugal e Espanha, pelo qual os reis ficavam incumbidos da organização e administração da Igreja Católica em seus domínios.
                        Coincidência ou não, o Papa Calisto III faleceu em 1458,  no dia 6 de agosto, dia do Bom Jesus de sua fé particular.
                        Na sangrenta batalha de Belgrado, os camponeses cristãos se lançaram à guerra com armas simples, tipo foices  e enxadas, inflamados pela oratória de João de Capistrano, monge italiano (1386-1456) e sob a condução especializada do príncipe e estrategista  húngaro João Corvino (1387-1456). Do lado turco muçulmano, o sultão Murad II saiu ferido gravemente na coxa e recuou com o que sobrou das tropas.
                        Em Roma, o Cristo Salvador da basílica papal de São João de Latrão (atualmente a única do Vaticano fora dos muros) tem duas festas maiores, o 9 de novembro (dedicação) e o 6 de agosto (Transfiguração). Será o Jesus Cristo da Transfiguração o mesmo da Cana Verde, dos Passos, de Matosinhos, da Paciência, dos Aflitos, do Ecce Homo, dos Perdões, da Redenção, da Pedra Fria e muitos outros, isto é, o primeiro da Transfiguração anuncia o drama da paixão e as imagens vão sendo relacionadas à fé do lugar e das pessoas que o habitam.
                        Em trabalho anterior pudemos confirmar que o culto do Bom Jesus já se achava em Portugal pelo menos desde a Idade Média, quase exclusivo no Norte (Entre-Douro e Minho), expandindo do convento de Bouças para Matosinhos, daí para o restante de Portugal, Espanha e mais tarde para as colônias portuguesas dos dois lados do Atlântico e até em Goa, na Índia, catedral, aliás, considerada uma das 7 Maravilhas do Patrimônio Português no mundo.
                        De Minas Gerais, a devoção ao Bom Jesus atingirá um raio de centenas de quilômetros, até Goiás e Mato Grosso, passando, naturalmente, pelas dezenas de freguesias, paróquias, futuras vilas e cidades, como é o caso de Batatais, aqui em nossa terra vai aportar na versão Cana Verde, reproduzida, aliás, em outros lugares de Minas, como a atual Perdões, Araguari, Tabuleiro ou a própria Cana Verde. Em São Paulo encontramos a devoção em Iguape, Jardinópolis e Tremembé, no Paraná em Siqueira Campos, na Bahia na Lapa e Bom Jesus da Serra. Ao que consta são mais de 200 (duzentas) as invocações ao Bom Jesus pelo Brasil afora.
                        Quando falamos em globalização e mundialização pensamos o fenômeno como se fosse completamente contemporâneo ou moderno, a História nos mostra, porém, que o Bom Jesus “viajou” -  a longo prazo, naturalmente -   da Armênia para os Balcãs, dali para a Itália, Portugal, atravessou o oceano, aportou na Bahia, penetrou em Minas Gerais e chegou até nós.

Publicado em "A Notícia", 13.07.2012

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Bom Jesus: o Senhor de muitos nomes
Sérgio Corrêa Amaro *
                        Batatais foi elevada à condição de freguesia por alvará régio de 25 de fevereiro de 1815, sob a invocação do Bom Jesus da Cana Verde dos Batatais, em seguimento a uma petição de moradores do entorno da primitiva capela de finais de 1810; natural que o trâmite levasse mais de quatro anos, pois a Mesa da Consciência e Ordens, sediada no Rio de Janeiro, só daria anuência depois de ouvidas as partes interessadas, os párocos de Franca e de Mogi Guaçu, esta porque perderia território para outra freguesia a ser criada, a de Casa Branca.
                        Por um motivo ou por outro, os párocos de Franca e Mogi Guaçu foram contra a criação das duas freguesias, no entanto, a firme disposição do Bispo de São Paulo, D. Mateus de Abreu Pereira, que acumulava na época o governo político da capitania ao de membro do alto clero, foi decisiva e as duas freguesias foram, enfim, criadas, cada uma com área própria de jurisdição.
                        O alvará do Príncipe-Regente, futuro D. João VI, confirma o orago da nova freguesia como Bom Jesus da Cana Verde dos Batatais. Ora, não seria mais simples e direto designar Bom Jesus da “Cana Verde”, sem a localização geográfica “dos Batatais”? À primeira vista, sim, porém, se examinamos o quadro político-religioso do final do século XVIII e décadas iniciais do XIX, veremos que a indicação era mais do que apropriada, era fundamental.
                        Ao fazer homenagem ao santo da devoção local - o Bom Jesus da Cana Verde – Sua Majestade cumpria não apenas um dever de reconhecimento, de consideração à fé dos paulistas-mineiros da margem direita do rio Pardo, como impunha o topônimo “dos Batatais” para apontar uma certa e determinada condição geográfico-política. Estado e Igreja andavam juntos na conquista e colonização do Brasil, onde não alcançava a mão do Rei, ali estavam os representantes da religião católica, relação simbiótica mais ou menos tranquila ao longo dos mais de três séculos desde o descobrimento.
                        No calor das discussões da transferência da matriz para o Campo Lindo das Araras, como já vimos, de um lado o Padre Bento José Pereira, de outro Manoel Bernardes do Nascimento e Antônio José Dias, nunca se discutiu a invocação do Senhor Bom Jesus, apenas e tão-somente a mudança física da capela.
                        O culto ao Bom Jesus era bastante antigo em Portugal, remontando à Idade Média, pelo menos. A lenda e a tradição popular, no entanto, indicam que a imagem de madeira do Cristo crucificado teria sido feita por Nicodemus, o amigo de Jesus, logo após a descida da cruz e a partir da modelagem inscrita no Santo Sudário. Nicodemus, segundo consta, fez cinco esculturas; perseguido pelos romanos pagãos jogou as imagens ao mar e pelo mar elas aportaram na Itália, na Síria, duas na Espanha e uma no Espinheiro, litoral de Portugal, no lugar denominado Matosinhos.
                        De início, o culto foi estabelecido no convento de Bouças, transferido para o Porto e finalmente para o outeiro de Matosinhos na altura do século XVI. O Norte de Portugal foi o centro irradiador do culto, atingindo todo o país, a Espanha e, num estágio, posterior, as colônias portuguesas de ultramar.
                        Introduzida no Brasil a devoção ao Bom Jesus de Matosinhos, via dos milhares de portugueses que vinham em busca de riquezas agrícolas (madeiras e cana-de-açúcar) e depois do ouro, vamos encontrar diversas variações em torno da imagem central, a de Matosinhos de Congonhas do Campo, Minas Gerais, segunda metade do século XVIII.  Assim, na sequência de representações artísticas da liturgia da Quaresma, foram surgindo e se adaptando à religiosidade local e popular o Senhor dos Passos, o Senhor da Pedra Fria, dos Aflitos, Ecce Homo, da Paciência, da Flagelação, da Coluna e, naturalmente,  o “nosso” da Cana Verde.     
                        Chegamos ao ponto, a cada freguesia o “seu” Bom Jesus, o orago bem especificado com “nome e sobrenome”. À época da criação da freguesia em Batatais, já vinha correndo até há mais tempo (desde 1803)  um processo de autorização do estatuto da Confraria do Bom Jesus de Matosinhos de Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais. Por fim, o príncipe-regente a reconheceu em fevereiro de 1814, em outubro a freguesia de Casa Branca e em fevereiro de 1815 a de Batatais.
                          Nossas pesquisas indicam um fato que pode ajudar a explicar detalhes da história de Batatais, o de que em Lavras do Funil (atual Lavras-MG) havia permissão para erigir uma capela do Bom Jesus da Cana Verde em 1768 e quem era de lá, quem havia se casado lá em Lavras? Nada menos que um dos protagonistas do célebre “caso da mudança da freguesia”, o português Antônio José Dias!  Teriam sido ele e esposa, Ana Antônia do Espírito Santo os introdutores do culto ao Bom Jesus da Cana Verde em nossa terra?       
Publicado em "A Notícia", 06.07.2012