segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A arte de bem morrer em Batatais – segunda parte
Sérgio Corrêa Amaro
                        Vimos no artigo anterior o sucesso editorial que foi o livro de Estevão de Castro “Breve aparelho e modo fácil de ajudar a bem morrer um cristão...” e hoje veremos como penetraram fundo na alma portuguesa e brasileira colonial as proposições de como preparar para a morte, os cuidados para evitar os ataques do demônio nas horas finais da agonia, a disposição dos bens pelos testamentos e as recomendações quanto ao funeral, às esmolas pias,  o sepultamento e até o número de missas para sufrágio da alma que partia deste mundo, de preferência sem estágio no purgatório e rumo direto ao céu dos cristãos.
                        Os testamentos muitas vezes eram lançados inteiros no mesmo livro paroquial de registro de óbitos ou podia constar apenas a parte da “herança pia” (esmolas e bens espirituais). Em outros arquivos, os testamentos estão nos autos de inventário judicial, com a relação dos herdeiros, avaliação dos bens, partilha e entrega (pagamento) do que coube a cada herdeiro. De acordo com o costume da época e o ordenamento jurídico, os testamentos traziam todos os bens, dos mais ínfimos, como talheres, roupas, enxadas e mais “trastes” até bens de raiz (terras), as roças, animais e escravos.
                        Via de regra, um testamento continha uma introdução, identificação do testador, invocação de Deus, de Jesus, da Santíssima Trindade, anjos e santos de devoção; nomeação de um ou mais testamenteiros, relação de herdeiros, disposição e forma de distribuir os bens, reconhecimento de paternidade de algum filho natural ou bastardo, confissão de dívidas, recomendação para sepultamento quanto a lugar, mortalha e pompas fúnebres, número de missas e esmolas.
                        De modo geral, os testamentos do século XVIII eram bem mais complexos do que aqueles do início do  século XIX e à medida que este avança, permanecem as disposições dos bens materiais, diminuindo gradativamente as formulações de ordem espiritual.
                        Em Batatais, como já apontado em trabalhos anteriores, o padrão original era o português, pelas Ordenações Filipinas (vigentes no Brasil até 1916, ano do surgimento do Código Civil que vigorou até 2002), via colonizadores portugueses e brasileiros “paulistas” ou “mineiros”.
                        Tomemos alguns exemplos de testamentos de Batatais para fins de ilustração do que já foi dito acompanhando, parcialmente, transcrição de TAMBELLINI (2000)
                        O afamado alferes Antônio José Dias faleceu de icterícia aos dois de novembro de 1823, encomendou sua alma com os sacramentos necessários, o “opositor” padre Bento José Pereira, é dos poucos casos de transcrição quase completa do testamento no livro de registro de óbitos número 1, conservado na Igreja Matriz do Bom Jesus da Cana Verde.
                        De início, constatamos um “ligeiro” equívoco, que aumentava a idade do alferes em mais de 4 anos, pois o testamento da igreja diz que faleceu aos 78 anos, mas nunca poderia ter essa idade, pois nascera em 24 de fevereiro de 1749 em São Pedro de Morgade.  Assim, o alferes ficou “mais velho” ao morrer, pois tinha, na verdade, 74 anos...O sobrenome Chaves que aparece algumas vezes foi acrescentado muito tempo depois, com certeza para diferenciar de algum homônimo inconveniente ou simplesmente para referir-se ao local de nascimento, pois São Pedro de Morgade pertenceu à comarca de Chaves, do arcebispado de Braga.
                         Para obter o batismo do alferes, tivemos o apoio inestimável do genealogista Elpídio Novaes Filho, de Ribeirão Preto.
                        Filho de Domingos Dias e Maria Álvares (ou Alves), não se sabe como nem quando aportou no Brasil, casou-se em Lavras do Funil (atual Lavras-MG), com Ana Antônia do Espírito Santo, que faleceu antes dele (1811) da qual fez inventário em Mogi Mirim, atualmente conservado no Arquivo Histórico Municipal, em Franca.
                        Do relatório das verbas testamentárias anotadas pelo padre Bento José Pereira, extraímos que o falecido desejava ser sepultado com o hábito de São Francisco, ordem de muito prestígio em Minas Gerais, reservada a uma elite rica e exclusivamente de homens brancos de comportamento religioso exemplar.
                        No testamento nomeia herdeiros os sete filhos havidos do casamento legítimo e mais uma filha Maria, reconhecida e alforriada por quarenta mil réis, com a falecida escrava Inácia, quando era viúvo, o que ele mesmo declara ter sido “por miséria humana”, observe-se a confissão e o acerto de contas pessoais para chegar bem ao Paraíso.
                        Declara ser membro das prestigiadas ordens do Santíssimo Sacramento, das Almas, da Casa Santa de Jerusalém e da Ordem 3ª. de São Francisco, todas em São João Del Rey.
                        Nomeia três filhos como testamenteiros (os que executam o testamento, cumprindo-lhe as vontades e disposições) e promete a quem aceitasse aquele encargo o prêmio de cinquenta mil réis, livre de despesas.
                        Declarou ser de sua vontade o sepultamento na matriz, com missa de corpo presente com o pároco e com todos os sacerdotes que se achassem, pagos com a esmola do costume, pois a preocupação, bastante comum na época,  era obter a intermediação do maior número possível de padres.
                        Das missas “encomendadas” ao testamenteiro pediu 90 (noventa), distribuídas assim: 50 para sua própria alma, 10 para seu falecido pai, 10 para sua falecida esposa, 10 para seus falecidos escravos e 10 para todos que com ele tiveram negócios.
                        A “terça” era a parte que ele, falecido, podia dispor livremente, assim o fez pela alforria e libertação de uma escrava chamada Joana, no valor total e para os escravos Maria Negra, Domingos e Joaquim, pela metade do que valiam.
                        Reconhece algumas dívidas e manda que sejam pagas, nomeando os credores e onde podiam ser encontrados.
                        Ao Bom Jesus da Cana Verde declarou dever 22 mil réis em esmolas e à Senhora do Rosário outros 90 mil réis.
                        Ironicamente, ou por uma última tentativa de reverter o quadro da mudança da sede da matriz para o Campo Lindo das Araras, prometeu 100 mil réis se a capela interina do Bom Jesus permanecesse onde estava (nos Batatais, do amigo Manuel Bernardes do Nascimento), mas se fosse realmente transferida “para outra parte” nada se lhe daria...
                          Em moeda atual, os 100 mil réis prometidos equivaleriam a uns R$ 6.000,00, uma pequena fortuna para a época da pós-independência em que a moeda era considerada forte, suficiente para comprar um escravo do sexo masculino, adulto e produtivo, mais caro, proporcionalmente, que a própria terra.

Publicado em “A Notícia”, 17.08.2012

domingo, 12 de agosto de 2012

A arte de bem morrer em Batatais – primeira parte
Sérgio Corrêa Amaro
                        Desde tempos imemoriais o homem teve com a morte e o morrer uma relação ambígua, para dizer o mínimo, entre o medo do desconhecido, a tentativa de obter certas garantias no além ou as formas de facilitar a vida “do lado de lá” ao lado de ansiedade e esperança em alcançar o paraíso, fosse qual fosse, os Campos Elísios dos gregos e romanos, o reino dos mortos dos antigos egípcios ou o céu, para os cristãos de todas as vertentes, de preferência sem passagem pelo purgatório.
                        Entre os cristãos, católicos especialmente, podemos diferenciar, ao menos, três fases ou momentos distintos quanto ao ato de morrer ao longo dos tempos históricos: na Antiguidade, primeiros séculos do cristianismo, uma atitude de medo ante o desconhecido, mas pacífica e de resignação, à espera de um Juízo Final e da ressureição, presente até finais da Idade Média, uma morte, por assim dizer, “domesticada”.
                          Durante a Idade Média, a depender da época e do lugar geográfico, a morte vai aos poucos deixando o âmbito familiar e passa, cada vez mais, a ser “clericalizada”, isto é, com intermediação da Igreja Católica por meio de seus representantes na Terra, os sacerdotes (P. Ariès, 1989).
                        Será no século XVIII e no decorrer do século XIX que haverá uma nova representação da morte, por vezes romantizada, uma ruptura radical da morte familiar, em casa, rodeado de parentes e amigos, para uma morte insuportável, cada vez mais longe, recebendo influência cada vez maior da medicina higienista e do poder estabelecido. Aos poucos os enterramentos dentro ou perto das igrejas vão diminuindo, seja em razão de normas de ordem prática, para evitar contaminações e doenças, seja por motivos de ordem pública, os cemitérios vão passando para a administração municipal.
                         Ocorre, assim, como que uma separação mais claramente definida entre mortos e vivos, o local da morte é, cada vez mais, interdito à presença da família, deixa-se o “teatro” da casa em favor dos hospitais, a morte é um tabu, pouco ou nada se fala dela, ao doente de morte resta apenas a solidão; as práticas funerárias passam para profissionais pagos; o velório não ocorre em casa, mas em locais previamente determinados pela autoridade, não há grandes demonstrações de dor e de choro, como no passado, o luto é encurtado ao mínimo socialmente aceitável.
                        A arte de bem viver (ars vivendi) teve como paralelo a arte de bem morrer (ars moriendi), uma série de habilidades necessárias para o cristão morrer em paz consigo e com aqueles que o cercavam, atos preparatórios fundamentais como a confissão, extrema-unção e comunhão, o acerto de contas com possíveis desafetos e credores, modos de dispor dos bens que deixava, reconhecimento de filhos bastardos, prescrições a respeito do sepultamento, missas e orações.
                        Uma das questões principais dizia respeito ao testamento, a declaração solene de última vontade, documento a ser feito com urgência ao sinal de doença mortal ou, havendo tempo, com a antecedência necessária ao bom e fiel cumprimento “cristão” das disposições do falecido.
                        As regras de bem morrer foram sendo desenvolvidas na Europa a partir do século XV na passagem para o século XVI, inicialmente em pequenos opúsculos ou livretos, com textos e imagens.
                        O Concílio de Trento (1545-1563), instituidor da Reforma Católica (que, diga-se de passagem, já vinha se processando) também  trouxe inovações quanto aos ofícios fúnebres e a Companhia de Jesus (1540) irá produzir numerosas obras que terão, algumas, dezenas de edições, muito populares em Portugal e, por conseguinte, no Brasil colonial.
                        O mais conhecido foi um livro de 1621 (primeira edição) escrito por Estevão de Castro, padre jesuíta português (1575-1639) que teve edições conhecidas até pelo menos 1724, um sucesso editorial para a época, a revelar a preocupação quase doentia do homem com seu fim, a escatologia. O famoso livro foi publicado com o interessante (e longo) título de “Breve aparelho e modo fácil para ajudar a bem morrer um cristão com a recopilação da matéria de testamentos e penitência, várias orações devotas, tiradas da Escritura Sagrada e do Ritual Romano de N. S. P. Paulo V”.
                        O livro trazia um passo-a-passo para “morrer bem”, os socorros espirituais necessários, prática de redigir e orientar os testamentos, tudo em seis lições que acompanhavam os diversos “graus de doença” do moribundo.
                        Tanto em Portugal como no Brasil os modelos propostos seriam copiados, com ligeiras alterações, por mais de cem anos, o que tem diversas explicações, além da qualidade intrínseca do material produzido por Estevão de Castro: trazia pormenores que não eram claros no texto da lei vigente (Ordenações Filipinas) quanto à feitura dos testamentos e codicilos, a procedência do autor - pois era jesuíta, membro de uma ordem de muito prestígio e dedicada à preservação da fé católica - e o próprio didatismo da exposição, ensinando como em um tutorial contemporâneo, era quase tão fácil como preencher um formulário, num país de dimensões continentais como o nosso,  em que a Igreja tinha o maior número de letrados e estreitas relações com o poder político, pelo regime do padroado.
Publicado em "A Notícia" de 10.08.2012