domingo, 12 de agosto de 2012

A arte de bem morrer em Batatais – primeira parte
Sérgio Corrêa Amaro
                        Desde tempos imemoriais o homem teve com a morte e o morrer uma relação ambígua, para dizer o mínimo, entre o medo do desconhecido, a tentativa de obter certas garantias no além ou as formas de facilitar a vida “do lado de lá” ao lado de ansiedade e esperança em alcançar o paraíso, fosse qual fosse, os Campos Elísios dos gregos e romanos, o reino dos mortos dos antigos egípcios ou o céu, para os cristãos de todas as vertentes, de preferência sem passagem pelo purgatório.
                        Entre os cristãos, católicos especialmente, podemos diferenciar, ao menos, três fases ou momentos distintos quanto ao ato de morrer ao longo dos tempos históricos: na Antiguidade, primeiros séculos do cristianismo, uma atitude de medo ante o desconhecido, mas pacífica e de resignação, à espera de um Juízo Final e da ressureição, presente até finais da Idade Média, uma morte, por assim dizer, “domesticada”.
                          Durante a Idade Média, a depender da época e do lugar geográfico, a morte vai aos poucos deixando o âmbito familiar e passa, cada vez mais, a ser “clericalizada”, isto é, com intermediação da Igreja Católica por meio de seus representantes na Terra, os sacerdotes (P. Ariès, 1989).
                        Será no século XVIII e no decorrer do século XIX que haverá uma nova representação da morte, por vezes romantizada, uma ruptura radical da morte familiar, em casa, rodeado de parentes e amigos, para uma morte insuportável, cada vez mais longe, recebendo influência cada vez maior da medicina higienista e do poder estabelecido. Aos poucos os enterramentos dentro ou perto das igrejas vão diminuindo, seja em razão de normas de ordem prática, para evitar contaminações e doenças, seja por motivos de ordem pública, os cemitérios vão passando para a administração municipal.
                         Ocorre, assim, como que uma separação mais claramente definida entre mortos e vivos, o local da morte é, cada vez mais, interdito à presença da família, deixa-se o “teatro” da casa em favor dos hospitais, a morte é um tabu, pouco ou nada se fala dela, ao doente de morte resta apenas a solidão; as práticas funerárias passam para profissionais pagos; o velório não ocorre em casa, mas em locais previamente determinados pela autoridade, não há grandes demonstrações de dor e de choro, como no passado, o luto é encurtado ao mínimo socialmente aceitável.
                        A arte de bem viver (ars vivendi) teve como paralelo a arte de bem morrer (ars moriendi), uma série de habilidades necessárias para o cristão morrer em paz consigo e com aqueles que o cercavam, atos preparatórios fundamentais como a confissão, extrema-unção e comunhão, o acerto de contas com possíveis desafetos e credores, modos de dispor dos bens que deixava, reconhecimento de filhos bastardos, prescrições a respeito do sepultamento, missas e orações.
                        Uma das questões principais dizia respeito ao testamento, a declaração solene de última vontade, documento a ser feito com urgência ao sinal de doença mortal ou, havendo tempo, com a antecedência necessária ao bom e fiel cumprimento “cristão” das disposições do falecido.
                        As regras de bem morrer foram sendo desenvolvidas na Europa a partir do século XV na passagem para o século XVI, inicialmente em pequenos opúsculos ou livretos, com textos e imagens.
                        O Concílio de Trento (1545-1563), instituidor da Reforma Católica (que, diga-se de passagem, já vinha se processando) também  trouxe inovações quanto aos ofícios fúnebres e a Companhia de Jesus (1540) irá produzir numerosas obras que terão, algumas, dezenas de edições, muito populares em Portugal e, por conseguinte, no Brasil colonial.
                        O mais conhecido foi um livro de 1621 (primeira edição) escrito por Estevão de Castro, padre jesuíta português (1575-1639) que teve edições conhecidas até pelo menos 1724, um sucesso editorial para a época, a revelar a preocupação quase doentia do homem com seu fim, a escatologia. O famoso livro foi publicado com o interessante (e longo) título de “Breve aparelho e modo fácil para ajudar a bem morrer um cristão com a recopilação da matéria de testamentos e penitência, várias orações devotas, tiradas da Escritura Sagrada e do Ritual Romano de N. S. P. Paulo V”.
                        O livro trazia um passo-a-passo para “morrer bem”, os socorros espirituais necessários, prática de redigir e orientar os testamentos, tudo em seis lições que acompanhavam os diversos “graus de doença” do moribundo.
                        Tanto em Portugal como no Brasil os modelos propostos seriam copiados, com ligeiras alterações, por mais de cem anos, o que tem diversas explicações, além da qualidade intrínseca do material produzido por Estevão de Castro: trazia pormenores que não eram claros no texto da lei vigente (Ordenações Filipinas) quanto à feitura dos testamentos e codicilos, a procedência do autor - pois era jesuíta, membro de uma ordem de muito prestígio e dedicada à preservação da fé católica - e o próprio didatismo da exposição, ensinando como em um tutorial contemporâneo, era quase tão fácil como preencher um formulário, num país de dimensões continentais como o nosso,  em que a Igreja tinha o maior número de letrados e estreitas relações com o poder político, pelo regime do padroado.
Publicado em "A Notícia" de 10.08.2012

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